Crônica de Luiz Fernando Veríssimo sobre o "BBB" Que me perdoem os ávidos telespectadores do Big Brother Brasil (BBB), produzido e organizado pela nossa distinta Rede Globo, mas conseguimos chegar ao fundo do poço...A décima terceira (está indo longe!) edição do BBB é uma síntese do que há de pior na TV brasileira. Chega a ser difícil, encontrar as palavras adequadas para qualificar tamanho atentado à nossa modesta inteligência. Dizem que Roma, um dos maiores impérios que o mundo conheceu, teve seu fim marcado pela depravação dos valores morais do seu povo, principalmente pela banalização do sexo. O BBB 11 é a pura e suprema banalização do sexo. Impossível assistir, ver este programa ao lado dos filhos. Gays, lésbicas, heteros... todos na mesma casa, a casa dos “heróis”, como são chamados por Pedro Bial. Não tenho nada contra gays, acho que cada um faz da vida o que quer, mas sou contra safadeza ao vivo na TV, seja entre homossexuais ou heterosexuais. O BBB 11 é a realidade em busca do IBOPE.. Veja como Pedro Bial tratou os participantes do BBB 11. Ele prometeu um “zoológico humano divertido” . Não sei se será divertido, mas parece bem variado na sua mistura de clichês e figuras típicas. Se entendi corretamente as apresentações, são 15 os “animais” do “zoológico”: o judeu tarado, o gay afeminado, a dentista gostosa, o negro com suingue, a nerd tímida, a gostosa com bundão, a “não sou piranha mas não sou santa”, o modelo Mr. Maringá, a lésbica convicta, a DJ intelectual, o carioca marrento, o maquiador drag-queen e a PM que gosta de apanhar (essa é para acabar!!!). Pergunto-me, por exemplo, como um jornalista, documentarista e escritor como Pedro Bial que, faça-se justiça, cobriu a Queda do Muro de Berlim, se submete a ser apresentador de um programa desse nível. Em um e-mail que recebi há pouco tempo, Bial escreve maravilhosamente bem sobre a perda do humorista Bussunda referindo-se à pena de se morrer tão cedo. Eu gostaria de perguntar se ele não pensa que esse programa é a morte da cultura, de valores e princípios, da moral, da ética e da dignidade. Outro dia, durante o intervalo de uma programação da Globo, um outro repórter acéfalo do BBB disse que, para ganhar o prêmio de um milhão e meio de reais, um Big Brother tem um caminho árduo pela frente, chamando-os de heróis. Caminho árduo? Heróis? São esses nossos exemplos de heróis? Caminho árduo para mim é aquele percorrido por milhões de brasileiros, profissionais da saúde, professores da rede pública (aliás, todos os professores), carteiros, lixeiros e tantos outros trabalhadores incansáveis que, diariamente, passam horas exercendo suas funções com dedicação, competência e amor, quase sempre mal remunerados.. Heróis, são milhares de brasileiros que sequer têm um prato de comida por dia e um colchão decente para dormir e conseguem sobreviver a isso, todo santo dia. Heróis, são crianças e adultos que lutam contra doenças complicadíssimas porque não tiveram chance de ter uma vida mais saudável e digna. Heróis, são inúmeras pessoas, entidades sociais e beneficentes, ONGs, voluntários, igrejas e hospitais que se dedicam ao cuidado de carentes, doentes e necessitados (vamos lembrar de nossa eterna heroína, Zilda Arns). Heróis, são aqueles que, apesar de ganharem um salário mínimo, pagam suas contas, restando apenas dezesseis reais para alimentação, como mostrado em outra reportagem apresentada meses atrás pela própria Rede Globo. O Big Brother Brasil não é um programa cultural, nem educativo, não acrescenta informações e conhecimentos intelectuais aos telespectadores, nem aos participantes, e não há qualquer outro estímulo como, por exemplo, o incentivo ao esporte, à música, à criatividade ou ao ensino de conceitos como valor, ética, trabalho e moral. E ai vem algum psicólogo de vanguarda e me diz que o BBB ajuda a "entender o comportamento humano". Ah, tenha dó!!! Veja o que está por de tra$$$$$$$$$$$$$$$$ do BBB: José Neumani da Rádio Jovem Pan, fez um cálculo de que se vinte e nove milhões de pessoas ligarem a cada paredão, com o custo da ligação a trinta centavos, a Rede Globo e a Telefônica arrecadam oito milhões e setecentos mil reais. Eu vou repetir: oito milhões e setecentos mil reais a cada paredão. Já imaginaram quanto poderia ser feito com essa quantia se fosse dedicada a programas de inclusão social, moradia, alimentação, ensino e saúde de muitos brasileiros? (Poderia ser feito mais de 520 casas populares; ou comprar mais de 5.000 computadores!) Essas palavras não são de revolta ou protesto, mas de vergonha e indignação, por ver tamanha aberração ter milhões de telespectadores. Em vez de assistir ao BBB, que tal ler um livro, um poema de Mário Quintana ou de Neruda ou qualquer outra coisa..., ir ao cinema..., estudar.... , ouvir boa música..., cuidar das flores e jardins... ,telefonar para um amigo... , visitar os avós... , pescar..., brincar com as crianças... , namorar... ou simplesmente dormir. Assistir ao BBB é ajudar a Globo a ganhar rios de dinheiro e destruir o que ainda resta dos valores sobre os quais foi construído nossa sociedade |
domingo, 23 de janeiro de 2011
BBB
sexta-feira, 21 de janeiro de 2011
Sepe teve audiência com o secretário estadual de educação
Sepe teve audiência com o secretário estadual de educação |
Os coordenadores gerais do Sepe tiveram a primeira audiência de 2011 com o secretário Wilson Risolia hoje pela manhã, na sede da Seeduc. Vários temas foram discutidos, mas, infelizmente, Risolia praticamente não concluiu nenhum deles, apesar de afirmar que irá analisar todos as reivindicações. Em relação aos salários da categoria e aos investimentos no setor, o secretário concordou que os profissionais recebem um salário baixo – conclusão, convenhamos, fácil de se chegar... -; mas não aceitou a crítica de que os investimentos são baixos e citou o novo plano de metas como uma espécie de “salvação” da educação. A verdade é que o plano foi lançado com todo o estardalhaço na mídia, mas na prática os investimentos não serão aumentados, e ficarão em 2011 em torno do mesmo valor do ano passado: R$ 140 milhões. Aliás, o gasto previsto para o plano de metas (R$ 140 milhões) é menor do que o que foi investido com o Nova Escola, que no seu auge chegou a R$ 200 milhões. Dessa forma, oplano de metas foi lançado pelo governo tendo em vista a melhoria da posição do estado do Rio no Ideb, mas a manutenção do mesmo patamar de investimento em 2011 desmente essa intenção. Como melhorar a educação mantendo o mesmo investimento, que é considerado pequeno pela maioria dos especialistas do orçamento do Rio? O Sepe realiza no dia 12 de fevereiro, às 10h, no auditório da ACM, uma assembleia geral da categoria. Será a primeira do ano e muito importante, pois os profissionais de educação discutirão a linha geral de mobilização da categoria em 2011. A seguir, um resumo do que foi discutido na audiência com Risolia: 1) Auxílio-transporte: o secretário informou que será pago a todos os profissionais a partir de março – não deu detalhes do valor; 2) Auxílio-qualificação: será um abono de R$ 500 por semestre pago somente aos professores da ativa. O primeiro deverá sair em abril, como um cartão pré-pago bancário. 3) Licença prêmio: o Sepe denunciou que a Seeduc não está concedendo aos profissionais esse direito – Risolia disse que irá analisar o assunto; 4) Abonos das paralisações: o sindicato cobrou o abono de diversos dias paralisados – o secretário vai analisar o pedido; 5) Abono do dia 1º de novembro de 2010 – o secretário vai analisar o pedido; 6) Animadores culturais: segundo Risolia, a Procuradoria Geral do Estado considerou inconstitucional a PEC que regulariza a situação desse setor. Para o Sepe, o governo quer acabar com o segmento, mas o secretário informou que vai analisar o problema e dará uma resposta ao sindicato; 7) Conexão Professor: Risolia informou que não haverá retaliação de qualquer espécie ao professor que não preencheu os dados; 8) Licenças médicas: o sindicato reivindicou que a Seeduc aumente o prazo de licença, que hoje é de 120 dias – o secretário vai analisar o pedido; 9) Lotação em uma só escola: os novos concursados têm sido lotados em mais de uma unidade; o Sepe reivindicou que eles sejam lotados em apenas uma unidade. |
sexta-feira, 14 de janeiro de 2011
Foi assim...
Foi assim que tudo aconteceu.É um modo clássico de iniciar uma história, seja real ou não, o que importa é o que vai ser contado, principalmente em sua essência histórica. Há muito que sei da importância do tempo, não só em termos da vida biológica de cada um, mas, acima de tudo em sua representação concreta ou idealizada para as sociedades.
Faz tempo, bastante tempo, que tinha decidido contar algumas coisas. Contar antes que se tornassem matéria do esquecimento ou pura fantasia de um idoso com muito tempo de ócio. O presente relato, que tem a forma de uma correspondência entre amigos, pretende preencher essa necessidade. Num certo sentido até há certa correspondência temporal entre os fatos recordados e o mundo real, entretanto, como existem vários pontos que ficaram nebulosos em termos de concreção e memória, a escolha foi pela ficcioninalização desses pontos. Um cuidado bem útil para preservar a intimidade de algumas pessoas e o direito à privacidade de outras. De qualquer maneira, há um rigoroso respeito ao que está disposto no provérbio italiano de que “se non é vero, é bene trovato”.*******************O tempo é realmente um portentoso mestre, tanto que só agora consigo ver a grande importância que foi ser filho de uma numerosa família – só de irmãos tenho 6 (2 homens e 4 mulheres), pois, há dois anos que morreu o Carlos, o terceiro depois de mim. Creio que foi esse fato que me educou a ter pouco apego às coisas materiais e me ensinou a ser tolerante, pois, como sou o primogênito e a segunda é mais nova que eu 8 anos, ao lidar e também cuidar daquele bando de crianças fui perdendo o natural egoísmo das crianças. O resultado é que até hoje ainda mantenho certo comportamento paternal para com eles. Como lá em Belém quase todo mundo morava em grandes casas, com jardins e enormes quintais, para mim foi fácil torná-los meus pequenos parceiros de jogos e brinquedos. Tudo isso durou até a vinda de todos para o Rio de Janeiro com a transferência de trabalho do meu pai, em 1956.Todas as vezes em que relembro a minha infancia, mesmo sabendo que tenho uma memória digna de um elefante, tenho a sensação de que as lembranças são matizadas por uma espécie de sonho ou magia. Como paraense, aculturado entre quatro tipos de modos de olhar o mundo – o marajoara, o homem do baixo-amazonas, o judeu fugitivo e o cristão quase sacrílego – sempre procurei compreender o meu mundo infanto-juvenil não com a crueza da lógica racionalista, mas, acima de tudo, pelas cores e belezas da imaginação. É impossível fugir desse modo de ser e agir. A própria natureza quase que nos obriga a fazer com que o fantástico e a imaginação tenham a justa preeminência. Hoje em dia, infelizmente, muito dessa magia cultural está a ser destruída. E neste processo de destruição cultural, fica difícil crer e aceitar viver no fabuloso mundo das mitologias indígenas e daquele sincretismo fantasioso que são as lendas herdadas da Europa. Como a modernidade ainda não tinha destruído àquela lógica fabular e o pouco avanço técnico existente ainda trazia o imagístico estético de dois belos momentos, da Art Nouveau e da Art Deco, era possível sentir a Amazônia, não como um mundo a ser descoberto e explorado materialmente, mas, o conjunto de vários universos mágicos. E por falar nisso, em 2001 estive em Belém por pouco tempo, porém tempo mais do que suficiente para me entristecer com a decadência estética e ética de uma antiga bela cidade. Não houve retrato na parede e nem a clássica recherche du temps perdu que me fizessem lembrar a cordialíssima cidade que deixei em 1962. De nada adiantou flanar pela Conselheiro, tudo estava em ruínas, ora física, ora de abandono afetivo. Ser paraense ou amazônida é mais do que uma naturalidade, é um peculiar jeito de conviver com a natureza e aceitar os demais seres humanos como integrantes daquele mundão. A minha vida paraense bem que pode ser dividida de acordo com os meus diversos momentos de consciência. Um, o mais antigo creio que se passou entre o meu prematuro nascimento e os meus 6 anos de idade. É uma época que tenho apenas lampejos de memória. Foi a época em que fiquei gravemente doente. Eu estava em Santarém e morava na casa dos meus tios Ninito e Zilah, num bungallow art deco à beira do muro que dava para a praia. Sei que tudo começou quando eu estava na praia, onde fui encontrado desmaiado e com muita febre.Foi tão ruim que perdi completamente o controle dos meus músculos, não movia nenhum músculo, çreio que não morri graças ao amor e ao empenho de uma irmã da mamãe, a Tia Edith, que além de me massagear e fazer alongamentos, alimentava-me e me contava histórias. Há, no entanto, dois episódios que até hoje são constantes nas minhas lembranças daquele período. Um é referente ao rio, encontraram-me desmaiado na praia, deve ser verdade, pois, em mim ficou a terrível sensação de estar prestes a ser engolido pelo rio. Um outro, que é pouco antes de adoentar para valer, diz respeito a uma brincadeira com os meus primos na casa da minha avó materna, vó Marcolina, que era fazer das manguinhas que caíam um bando de pequenos bichinhos. Lembro que os meus bichinhos, para fugir dos animais mais ferozes, correram. É engraçado, mas foi tão forte e vivo esse fato que às vezes tenho a sensação de poder revivê-lo. O outro, está ligado à minha recuperação. Uma recuperação espantosa até hoje, pois, nenhum médico conseguiu descobrir o que me atingira. Para uns era paralisia infantil, para outros febre tifóide e uns outros, como a minha avó era dona de uma mercearia e todos nós, os netos, gostávamos de passar por lá, acreditam que fui infectado pelo bériberi, ora causado por fungos, ora por enzimas comuns a alguns peixes de água doce. É desse período que surge o meu gosto pela leitura e estudos, pois, como não podia me mexer, durante a viagem de volta para Belém, num dos belos navios gaiolas remanescentes do apogeu da borracha, Tia Edith lia livros infantis para mim, como ela tinha comprado uns quatro livros do Monteiro Lobato – História do Mundo para as crianças, Reinações de Narinho, Minotauro e Saci -, não só me mantinha atento como estava me dando um forte estímulo para a recuperação, o que aos pouco foi acontecendo. Como a viagem era lenta, durava cerca de sete dias de Santarém para Belém, porque o navio era movido a lenha e tinha que parar em várias cidades ribeirinhas para pegar as grandes achas de madeira, assim, mesmo com a ajuda do rio Amazonas empurrando, o trajeto demorava um pouco. Desse modo, sem que eu notasse já podia sustentar a cabeça erecta e movê-la de um lado para o outro. Com isso, Tia Edith resolveu me ensinar a ler, como quase não falava, optou por me ensinar a ler em bloco, usando os livros e desenhos que ela fazia como suporte. Só sei que ao chegar em Belém, sabia ler, embora não soubesse escrever. Era um legítimo semi-analfabeto. Por sorte e ao imenso esforço de todos os meus parentes, principalmente dos meus pais e dessa minha Tia Edith, além de um dedicado médico, Dr. Haroldo Barbosa, obtive uma rápida recuperação, pois, entre o início da crise e até a alta, tudo durou cerca de oito meses. Tenho certeza de que foi a sedutora magia do universo lobatiano e o apelo para o conhecimento que me deram a força interna para lutar pela vida e pelo bem viver. Creio que foi nessa fase que houve a construção do Pedro de hoje. Como tinha adquirido uma incrível velocidade de leitura e compreensão de conjunto, virei um devorador de livros e com a ajuda da minha Tia fui ampliando o domínio sobre o francês, o espanhol e o italiano. Um conhecimento que seria bem útil quando, depois de bem recuperado, voltei a passar as minhas férias de meio do ano e de fim-de-ano em Santarém, hóspede da Tia Zilah, que ao notar o meu gosto pela leitura comprou toda a coleção do Monteiro Lobato, que devorei de uma só feita. Porém, o importante é em sua casa havia uma excelente biblioteca, e um Tio, Ninito, Antonio, que aos poucos foi abrindo os meus horizontes intelectuais. Primeiro quando descobriu que eu adorava História e me deu de presente dois livros, um do Will Durant e outro do Cesare Cantú. Embora tenha gostado dos dois, como já estava a ler os clássicos, como Xenofonte, Plutarco e tudo o que fazia parte da famosa Coleção de Clássicos Jackson, o resultado foi certa insatisfação e mais curiosidade. Ora, como Tio Ninito era o que na época se chamava de livre pensador, a sua biblioteca tinha de tudo e assim tive os meus primeiros contatos com Marx, Engels e os socialistas utópicos.Quando rememoro esses fatos, fico espantado com a minha rápida aptidão para o pensamento dialético. O mesmo fascínio e admiração que tive pelo materialismo histórico e dialético naqueles anos em que a minha infância começava a se mudar em adolescência por força das idéias e da imaginação, ainda existem até hoje. Para mim é sempre um deslumbre ver e compreender os caminhos do ser humano na sua marcha para o futuro. Creio que é por causa dessa imensa emoção intelectual que às vezes me perco tentando deslindar o porvir, que para mim é bem claro, sem prestar atenção de que para os outros não é bem assim. Se alguém me perguntar qual foi o período mais rico e frutífero da minha vida, a resposta é uma só – a etapa que vai da infância à adolescência. E um lugar tem grande destaque, a cidade de Santarém, no Pará, às margens de dois gigantescos e belos rios, o Amazonas e o Tapajós. Santarém é a cidade da família de minha mãe, que a exemplo de todas cidades da região amazônica, vive do e pelo rio. Até suas “estações” climáticas têm o rio como definidor, quando é época de cheia há o inverno, quando há a vazante é tempo de verão. Como Santarém fica em cima de um pequeno monte, a serra Piroca, as cheias só a afetam nos terrenos baixos, nos demais há um alto muro separando a cidade das praias. Por coincidência, os meses de férias escolares se harmonizavam com esse peculiar regime climático, assim, desde bem pequeno convivi com a força desses dois rios. Rios que não se misturam. O Amazonas tem as águas turvas, cor de barro e uma força que anualmente redesenha o seu leito, ora movendo ilhas, ora criando outras. O Tapajós é verde, com águas cristalinas e praias de uma areia tão fina que faz chiado quando percorrida. É evidente que preferia sair para conhecer aquele rio que me permitia ver os peixes e outros de seus habitantes, principalmente quando entrava nos lagos que ele criava na cheia e permitia que continuassem na seca. Imagina uma criança vendo e convivendo com aquela exuberância de cores e formas, além do sentido mágico das crenças populares, todas herdadas dos indígenas da região. Aí serás capaz de entender porque me foi fácil compreender a dialética da natureza e dela construir o arcabouço do meu pensar. Era (e é) uma dialética em que há espaço para tudo que acontece na Natureza, seja explicável ou não. É interessante, mas, sempre vivi dividido entre o sentido mágico de encarar a natureza e suas leis, a exemplo dos índios, e a visão racionalista, com nítida vantagem para a magia. Uma magia que me fez suportar várias situações adversas e doridas
Foi assim….- II -
Eu fiquei em Belém até meados de 1962, quando me transferi para o Rio por questões políticas, pois, graças às invencionices criadas e escritas por um major do Exército, Jarbas Passarinho, na época responsável pela Superintendência da Petrobrás, mas chefe do Serviço Secreto do Exército, o S2, cópia do Deuxième Bureau da França, que envolveu a mim, diversos amigos e companheiros de luta política universitária num mirabolante plano de desencadear guerrilhas na região. O resultado dessa besteira do major é que ao ser aberto um inquérito na Auditoria Militar de Belém, em que seria processado pela lei de Segurança Nacional da época, foi decidida a minha viagem. Desde àquela época que sabíamos que o major era o autor do “plano”, graças ao coronel Jefferson Cardim, então chefe-do-estado-maior da 8ª Região Militar, sediada em Belém, cujo comandante era o general Taurino de Resende.
É claro que foi um certo transtorno, pois, mesmo sabedor de que poderia sair de Belém a qualquer momento, fora da questão da “guerrilha” do Jarbas, esperava ainda ficar mais um tempo por lá. Fora os trabalhos políticos que estava envolvido, tinha a Faculdade de Direito, a minha atividade como professor de História Contemporânea para o clássico e científico de diversos colégios. Enfim, tinha um bocado de coisas que não estava interessado em abrir mão. Mesmo coisas com a maior cara de futilidade, como o meu grupo de amigos do Central Café.
Nesse grupo, sem favor algum, foi que desenvolvi e ordenei todo o conhecimento que vinha acumulando desde os meus 5 anos de idade. Ano em que aprendi a ler e o primeiro livro que li foi o que marcou a minha vida para sempre “A história do Mundo para as crianças” do Monteiro Lobato. A partir desse livro, devorei todos os livros do Monteiro Lobato, o que me ajudou a manter sempre aberta a ligação entre o meu pensamento racional e a minha imaginação. Lá no Central Café fiz o mestrado, o doutorado e a superespecialização em Ciências Sociais, Economia, Política, História e Literatura. Além de ter aprendido grandes lições de solidariedade, amizade e fraternidade entre pessoas cuja identificação se dava a partir do gosto pelos estudos, pelo conhecimento, pela beleza e pela política. Entretanto, hoje sei que só consegui aprender e assimilar com inteligência o que ouvia, via, lia e debatia porque tinha tido aquela base humanística e mágica que só o Monteiro Lobato seria capaz de forjar em uma criança.
A minha relação com Belém ficou truncada, tanto que por lá passei depois de 1964, numa rápida passagem de dois dias em 1965, para obter uns documentos pessoais. Lembro que fui tratado como se tivesse uma doença infetcto-contagiosa por vários dos meus colegas e conhecidos, só o pessoal do Central Café e os companheiros do Partido me trataram com normalidade. O engraçado é que até topei com o Jarbas na rua. Cumprimentamo-nos e já aqui no Rio, semanas depois, soube que ele dizia não ter sabido da minha presença por lá. Assim, desde aquela data não voltei mais ao Pará por duas razões bem simples, egoístas e quase infantis. Lá no meu íntimo, mesmo sem que eu soubesse, havia a preservação de um tempo, de lembranças e da memória dos jogos que foram me formando gente. Talvez até hajam outros motivos, mas, que eu me recorde mesmo e sinta a pressão deles, foram dois os motivos.
Primeiro, porque desejava reter na memória a lembrança de uma região ainda quase intacta e cheia da magia que só a infância produz. Belém, na minha memória está dividida em três bairros: Telégrafo, Umarizal e Batista Campos. No primeiro, na senador Lemos, aprendi as brincadeiras juninas, as primeiras histórias fantásticas e de assombrações, bem como empinar papagaio, jogar bola no campo da igreja de S. Raimundo, assistir as vesperais do Íris e a gostar de história em quadrinho, junto com certa mania para inventar brinquedos. No Umarizal, na S. Jerônimo, em frente ao Hospital dos Marítimos, quase esquina da Alcindo Cacela, há aquele momento muito importante para qualquer homem, a descoberta de si mesmo. Ainda que houvesse muita importância nos jogos e brincadeiras típicas dos garotos daquela época, como jogar bola na rua, rolar pião e jogar peteca, outros ingredientes passavam a fazer parte da minha vida. Estava no ginásio e com isso, pela primeira vez, era obrigado a pensar que existia muita coisa além das brincadeiras, jogos de bola e cinema.
A minha infância e os primórdios adolescentes tiveram nos rios do Baixo-Amazonas, nos igarapés e igapós de Belém, além de algumas pequenas ilhas componentes do arquipélago de Marajó, não só o seu universo de jogos e brincadeiras, mas a base de um sentimento mágico que a floresta cria, em que tudo pode ser possível. Desse modo, como não poderia deixar de ser, escolhi ficar com o realismo mágico da memória e da floresta. Vez por outra, quando me permito, deixo a memória voar sem rumo no tempo, sem a menor preocupação com a cronologia ou estrito relato fatual. Uma das coisas que mais me intriga hoje em dia, é lembrar que junto com amigos atravessava o igapó que ia da São Jerônimo até à Pedreira sem pisar em lama nenhuma.
Belém e a Província do Grão-Pará sempre viveram fora do Brasil, tanto que sua colonização e administração foram feitas diretamente pela Coroa Portuguesa. O Pará e Belém eram um novo Portugal, Santarém, Monte Alegre, Bragança, Óbidos, Alenquer, Vigia e Viseu, por exemplo, nomes comuns lá e cá. Quando o Pará ingressa realmente na História do Brasil, o faz através de uma guerra civil popular, a “Cabanagem”. Que ao ser vitoriosa pelas armas, é derrotada pela cooptação de seu líderes. Mesmo assim, ainda ficou bastante forte o sentimento isolacionista.
É aí que entra a importância do ciclo da borracha, uma importância cultural várias vezes superior ao valor econômico daquele período. Embora tivesse nascido em Belém, em que harmoniosamente se mesclavam as influências do final do barroco português, caminhando para o ecletismo, para o neoclássico e à Art Nouveau da nova era industrial, só fui sentir a força dessa influência ao me aproximar da fase adulta. Foi quando comecei a compreender o peculiar modo de ser e de pensar dos meus contemporâneos. Creio que foi nessa fase, ainda próxima da adolescência, que houve a grande transformação em meu modo de pensar. Um modo de pensar que hoje sei que é uma extensão da magia e encantamento vividos antes.
Para os paraenses era mais fácil e normal estudar na Europa que no Sul do Brasil. Era manter uma tradição, em que Montpellier, Cambridge e Coimbra eram mais do que simples nomes, autênticas extensões de práticas familiares. Um comportamento que perdurou até os anos 50 do século XX .
Com o Golpe de 1964, fora a violência institucional e prática, houve o desmonte de quase tudo aquilo que nos tinha mantido como identidade específica e própria. Belém, continua uma cidade bonita, mas, para mim, parafraseando Drummond, nem chega a ser um retrato na parede. Era impossível reagir à “miamização” política, urbana e lógica dos novos tempos. Bom gosto, cultura humanista, solidariedade e identidade cultural própria fazem parte de tudo o que foi considerado como lixo histórico pelo novo poder.
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Foi assim que tudo aconteceu.É um modo clássico de iniciar uma história, seja real ou não, o que importa é o que vai ser contado, principalmente em sua essência histórica. Há muito que sei da importância do tempo, não só em termos da vida biológica de cada um, mas, acima de tudo em sua representação concreta ou idealizada para as sociedades.
Faz tempo, bastante tempo, que tinha decidido contar algumas coisas. Contar antes que se tornassem matéria do esquecimento ou pura fantasia de um idoso com muito tempo de ócio. O presente relato, que tem a forma de uma correspondência entre amigos, pretende preencher essa necessidade. Num certo sentido até há certa correspondência temporal entre os fatos recordados e o mundo real, entretanto, como existem vários pontos que ficaram nebulosos em termos de concreção e memória, a escolha foi pela ficcioninalização desses pontos. Um cuidado bem útil para preservar a intimidade de algumas pessoas e o direito à privacidade de outras. De qualquer maneira, há um rigoroso respeito ao que está disposto no provérbio italiano de que “se non é vero, é bene trovato”.*******************O tempo é realmente um portentoso mestre, tanto que só agora consigo ver a grande importância que foi ser filho de uma numerosa família – só de irmãos tenho 6 (2 homens e 4 mulheres), pois, há dois anos que morreu o Carlos, o terceiro depois de mim. Creio que foi esse fato que me educou a ter pouco apego às coisas materiais e me ensinou a ser tolerante, pois, como sou o primogênito e a segunda é mais nova que eu 8 anos, ao lidar e também cuidar daquele bando de crianças fui perdendo o natural egoísmo das crianças. O resultado é que até hoje ainda mantenho certo comportamento paternal para com eles. Como lá em Belém quase todo mundo morava em grandes casas, com jardins e enormes quintais, para mim foi fácil torná-los meus pequenos parceiros de jogos e brinquedos. Tudo isso durou até a vinda de todos para o Rio de Janeiro com a transferência de trabalho do meu pai, em 1956.Todas as vezes em que relembro a minha infancia, mesmo sabendo que tenho uma memória digna de um elefante, tenho a sensação de que as lembranças são matizadas por uma espécie de sonho ou magia. Como paraense, aculturado entre quatro tipos de modos de olhar o mundo – o marajoara, o homem do baixo-amazonas, o judeu fugitivo e o cristão quase sacrílego – sempre procurei compreender o meu mundo infanto-juvenil não com a crueza da lógica racionalista, mas, acima de tudo, pelas cores e belezas da imaginação. É impossível fugir desse modo de ser e agir. A própria natureza quase que nos obriga a fazer com que o fantástico e a imaginação tenham a justa preeminência. Hoje em dia, infelizmente, muito dessa magia cultural está a ser destruída. E neste processo de destruição cultural, fica difícil crer e aceitar viver no fabuloso mundo das mitologias indígenas e daquele sincretismo fantasioso que são as lendas herdadas da Europa. Como a modernidade ainda não tinha destruído àquela lógica fabular e o pouco avanço técnico existente ainda trazia o imagístico estético de dois belos momentos, da Art Nouveau e da Art Deco, era possível sentir a Amazônia, não como um mundo a ser descoberto e explorado materialmente, mas, o conjunto de vários universos mágicos. E por falar nisso, em 2001 estive em Belém por pouco tempo, porém tempo mais do que suficiente para me entristecer com a decadência estética e ética de uma antiga bela cidade. Não houve retrato na parede e nem a clássica recherche du temps perdu que me fizessem lembrar a cordialíssima cidade que deixei em 1962. De nada adiantou flanar pela Conselheiro, tudo estava em ruínas, ora física, ora de abandono afetivo. Ser paraense ou amazônida é mais do que uma naturalidade, é um peculiar jeito de conviver com a natureza e aceitar os demais seres humanos como integrantes daquele mundão. A minha vida paraense bem que pode ser dividida de acordo com os meus diversos momentos de consciência. Um, o mais antigo creio que se passou entre o meu prematuro nascimento e os meus 6 anos de idade. É uma época que tenho apenas lampejos de memória. Foi a época em que fiquei gravemente doente. Eu estava em Santarém e morava na casa dos meus tios Ninito e Zilah, num bungallow art deco à beira do muro que dava para a praia. Sei que tudo começou quando eu estava na praia, onde fui encontrado desmaiado e com muita febre.Foi tão ruim que perdi completamente o controle dos meus músculos, não movia nenhum músculo, çreio que não morri graças ao amor e ao empenho de uma irmã da mamãe, a Tia Edith, que além de me massagear e fazer alongamentos, alimentava-me e me contava histórias. Há, no entanto, dois episódios que até hoje são constantes nas minhas lembranças daquele período. Um é referente ao rio, encontraram-me desmaiado na praia, deve ser verdade, pois, em mim ficou a terrível sensação de estar prestes a ser engolido pelo rio. Um outro, que é pouco antes de adoentar para valer, diz respeito a uma brincadeira com os meus primos na casa da minha avó materna, vó Marcolina, que era fazer das manguinhas que caíam um bando de pequenos bichinhos. Lembro que os meus bichinhos, para fugir dos animais mais ferozes, correram. É engraçado, mas foi tão forte e vivo esse fato que às vezes tenho a sensação de poder revivê-lo. O outro, está ligado à minha recuperação. Uma recuperação espantosa até hoje, pois, nenhum médico conseguiu descobrir o que me atingira. Para uns era paralisia infantil, para outros febre tifóide e uns outros, como a minha avó era dona de uma mercearia e todos nós, os netos, gostávamos de passar por lá, acreditam que fui infectado pelo bériberi, ora causado por fungos, ora por enzimas comuns a alguns peixes de água doce. É desse período que surge o meu gosto pela leitura e estudos, pois, como não podia me mexer, durante a viagem de volta para Belém, num dos belos navios gaiolas remanescentes do apogeu da borracha, Tia Edith lia livros infantis para mim, como ela tinha comprado uns quatro livros do Monteiro Lobato – História do Mundo para as crianças, Reinações de Narinho, Minotauro e Saci -, não só me mantinha atento como estava me dando um forte estímulo para a recuperação, o que aos pouco foi acontecendo. Como a viagem era lenta, durava cerca de sete dias de Santarém para Belém, porque o navio era movido a lenha e tinha que parar em várias cidades ribeirinhas para pegar as grandes achas de madeira, assim, mesmo com a ajuda do rio Amazonas empurrando, o trajeto demorava um pouco. Desse modo, sem que eu notasse já podia sustentar a cabeça erecta e movê-la de um lado para o outro. Com isso, Tia Edith resolveu me ensinar a ler, como quase não falava, optou por me ensinar a ler em bloco, usando os livros e desenhos que ela fazia como suporte. Só sei que ao chegar em Belém, sabia ler, embora não soubesse escrever. Era um legítimo semi-analfabeto. Por sorte e ao imenso esforço de todos os meus parentes, principalmente dos meus pais e dessa minha Tia Edith, além de um dedicado médico, Dr. Haroldo Barbosa, obtive uma rápida recuperação, pois, entre o início da crise e até a alta, tudo durou cerca de oito meses. Tenho certeza de que foi a sedutora magia do universo lobatiano e o apelo para o conhecimento que me deram a força interna para lutar pela vida e pelo bem viver. Creio que foi nessa fase que houve a construção do Pedro de hoje. Como tinha adquirido uma incrível velocidade de leitura e compreensão de conjunto, virei um devorador de livros e com a ajuda da minha Tia fui ampliando o domínio sobre o francês, o espanhol e o italiano. Um conhecimento que seria bem útil quando, depois de bem recuperado, voltei a passar as minhas férias de meio do ano e de fim-de-ano em Santarém, hóspede da Tia Zilah, que ao notar o meu gosto pela leitura comprou toda a coleção do Monteiro Lobato, que devorei de uma só feita. Porém, o importante é em sua casa havia uma excelente biblioteca, e um Tio, Ninito, Antonio, que aos poucos foi abrindo os meus horizontes intelectuais. Primeiro quando descobriu que eu adorava História e me deu de presente dois livros, um do Will Durant e outro do Cesare Cantú. Embora tenha gostado dos dois, como já estava a ler os clássicos, como Xenofonte, Plutarco e tudo o que fazia parte da famosa Coleção de Clássicos Jackson, o resultado foi certa insatisfação e mais curiosidade. Ora, como Tio Ninito era o que na época se chamava de livre pensador, a sua biblioteca tinha de tudo e assim tive os meus primeiros contatos com Marx, Engels e os socialistas utópicos.Quando rememoro esses fatos, fico espantado com a minha rápida aptidão para o pensamento dialético. O mesmo fascínio e admiração que tive pelo materialismo histórico e dialético naqueles anos em que a minha infância começava a se mudar em adolescência por força das idéias e da imaginação, ainda existem até hoje. Para mim é sempre um deslumbre ver e compreender os caminhos do ser humano na sua marcha para o futuro. Creio que é por causa dessa imensa emoção intelectual que às vezes me perco tentando deslindar o porvir, que para mim é bem claro, sem prestar atenção de que para os outros não é bem assim. Se alguém me perguntar qual foi o período mais rico e frutífero da minha vida, a resposta é uma só – a etapa que vai da infância à adolescência. E um lugar tem grande destaque, a cidade de Santarém, no Pará, às margens de dois gigantescos e belos rios, o Amazonas e o Tapajós. Santarém é a cidade da família de minha mãe, que a exemplo de todas cidades da região amazônica, vive do e pelo rio. Até suas “estações” climáticas têm o rio como definidor, quando é época de cheia há o inverno, quando há a vazante é tempo de verão. Como Santarém fica em cima de um pequeno monte, a serra Piroca, as cheias só a afetam nos terrenos baixos, nos demais há um alto muro separando a cidade das praias. Por coincidência, os meses de férias escolares se harmonizavam com esse peculiar regime climático, assim, desde bem pequeno convivi com a força desses dois rios. Rios que não se misturam. O Amazonas tem as águas turvas, cor de barro e uma força que anualmente redesenha o seu leito, ora movendo ilhas, ora criando outras. O Tapajós é verde, com águas cristalinas e praias de uma areia tão fina que faz chiado quando percorrida. É evidente que preferia sair para conhecer aquele rio que me permitia ver os peixes e outros de seus habitantes, principalmente quando entrava nos lagos que ele criava na cheia e permitia que continuassem na seca. Imagina uma criança vendo e convivendo com aquela exuberância de cores e formas, além do sentido mágico das crenças populares, todas herdadas dos indígenas da região. Aí serás capaz de entender porque me foi fácil compreender a dialética da natureza e dela construir o arcabouço do meu pensar. Era (e é) uma dialética em que há espaço para tudo que acontece na Natureza, seja explicável ou não. É interessante, mas, sempre vivi dividido entre o sentido mágico de encarar a natureza e suas leis, a exemplo dos índios, e a visão racionalista, com nítida vantagem para a magia. Uma magia que me fez suportar várias situações adversas e doridas
Foi assim que tudo aconteceu.É um modo clássico de iniciar uma história, seja real ou não, o que importa é o que vai ser contado, principalmente em sua essência histórica. Há muito que sei da importância do tempo, não só em termos da vida biológica de cada um, mas, acima de tudo em sua representação concreta ou idealizada para as sociedades.
Faz tempo, bastante tempo, que tinha decidido contar algumas coisas. Contar antes que se tornassem matéria do esquecimento ou pura fantasia de um idoso com muito tempo de ócio. O presente relato, que tem a forma de uma correspondência entre amigos, pretende preencher essa necessidade. Num certo sentido até há certa correspondência temporal entre os fatos recordados e o mundo real, entretanto, como existem vários pontos que ficaram nebulosos em termos de concreção e memória, a escolha foi pela ficcioninalização desses pontos. Um cuidado bem útil para preservar a intimidade de algumas pessoas e o direito à privacidade de outras. De qualquer maneira, há um rigoroso respeito ao que está disposto no provérbio italiano de que “se non é vero, é bene trovato”.
Faz tempo, bastante tempo, que tinha decidido contar algumas coisas. Contar antes que se tornassem matéria do esquecimento ou pura fantasia de um idoso com muito tempo de ócio. O presente relato, que tem a forma de uma correspondência entre amigos, pretende preencher essa necessidade. Num certo sentido até há certa correspondência temporal entre os fatos recordados e o mundo real, entretanto, como existem vários pontos que ficaram nebulosos em termos de concreção e memória, a escolha foi pela ficcioninalização desses pontos. Um cuidado bem útil para preservar a intimidade de algumas pessoas e o direito à privacidade de outras. De qualquer maneira, há um rigoroso respeito ao que está disposto no provérbio italiano de que “se non é vero, é bene trovato”.
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O tempo é realmente um portentoso mestre, tanto que só agora consigo ver a grande importância que foi ser filho de uma numerosa família – só de irmãos tenho 6 (2 homens e 4 mulheres), pois, há dois anos que morreu o Carlos, o terceiro depois de mim. Creio que foi esse fato que me educou a ter pouco apego às coisas materiais e me ensinou a ser tolerante, pois, como sou o primogênito e a segunda é mais nova que eu 8 anos, ao lidar e também cuidar daquele bando de crianças fui perdendo o natural egoísmo das crianças.
O resultado é que até hoje ainda mantenho certo comportamento paternal para com eles. Como lá em Belém quase todo mundo morava em grandes casas, com jardins e enormes quintais, para mim foi fácil torná-los meus pequenos parceiros de jogos e brinquedos. Tudo isso durou até a vinda de todos para o Rio de Janeiro com a transferência de trabalho do meu pai, em 1956.Todas as vezes em que relembro a minha infancia, mesmo sabendo que tenho uma memória digna de um elefante, tenho a sensação de que as lembranças são matizadas por uma espécie de sonho ou magia.
Como paraense, aculturado entre quatro tipos de modos de olhar o mundo – o marajoara, o homem do baixo-amazonas, o judeu fugitivo e o cristão quase sacrílego – sempre procurei compreender o meu mundo infanto-juvenil não com a crueza da lógica racionalista, mas, acima de tudo, pelas cores e belezas da imaginação. É impossível fugir desse modo de ser e agir. A própria natureza quase que nos obriga a fazer com que o fantástico e a imaginação tenham a justa preeminência. Hoje em dia, infelizmente, muito dessa magia cultural está a ser destruída. E neste processo de destruição cultural, fica difícil crer e aceitar viver no fabuloso mundo das mitologias indígenas e daquele sincretismo fantasioso que são as lendas herdadas da Europa.
Como a modernidade ainda não tinha destruído àquela lógica fabular e o pouco avanço técnico existente ainda trazia o imagístico estético de dois belos momentos, da Art Nouveau e da Art Deco, era possível sentir a Amazônia, não como um mundo a ser descoberto e explorado materialmente, mas, o conjunto de vários universos mágicos. E por falar nisso, em 2001 estive em Belém por pouco tempo, porém tempo mais do que suficiente para me entristecer com a decadência estética e ética de uma antiga bela cidade. Não houve retrato na parede e nem a clássica recherche du temps perdu que me fizessem lembrar a cordialíssima cidade que deixei em 1962. De nada adiantou flanar pela Conselheiro, tudo estava em ruínas, ora física, ora de abandono afetivo.
Ser paraense ou amazônida é mais do que uma naturalidade, é um peculiar jeito de conviver com a natureza e aceitar os demais seres humanos como integrantes daquele mundão. A minha vida paraense bem que pode ser dividida de acordo com os meus diversos momentos de consciência. Um, o mais antigo creio que se passou entre o meu prematuro nascimento e os meus 6 anos de idade. É uma época que tenho apenas lampejos de memória. Foi a época em que fiquei gravemente doente. Eu estava em Santarém e morava na casa dos meus tios Ninito e Zilah, num bungallow art deco à beira do muro que dava para a praia. Sei que tudo começou quando eu estava na praia, onde fui encontrado desmaiado e com muita febre.
Foi tão ruim que perdi completamente o controle dos meus músculos, não movia nenhum músculo, çreio que não morri graças ao amor e ao empenho de uma irmã da mamãe, a Tia Edith, que além de me massagear e fazer alongamentos, alimentava-me e me contava histórias. Há, no entanto, dois episódios que até hoje são constantes nas minhas lembranças daquele período. Um é referente ao rio, encontraram-me desmaiado na praia, deve ser verdade, pois, em mim ficou a terrível sensação de estar prestes a ser engolido pelo rio. Um outro, que é pouco antes de adoentar para valer, diz respeito a uma brincadeira com os meus primos na casa da minha avó materna, vó Marcolina, que era fazer das manguinhas que caíam um bando de pequenos bichinhos.
Lembro que os meus bichinhos, para fugir dos animais mais ferozes, correram. É engraçado, mas foi tão forte e vivo esse fato que às vezes tenho a sensação de poder revivê-lo. O outro, está ligado à minha recuperação. Uma recuperação espantosa até hoje, pois, nenhum médico conseguiu descobrir o que me atingira. Para uns era paralisia infantil, para outros febre tifóide e uns outros, como a minha avó era dona de uma mercearia e todos nós, os netos, gostávamos de passar por lá, acreditam que fui infectado pelo bériberi, ora causado por fungos, ora por enzimas comuns a alguns peixes de água doce.
É desse período que surge o meu gosto pela leitura e estudos, pois, como não podia me mexer, durante a viagem de volta para Belém, num dos belos navios gaiolas remanescentes do apogeu da borracha, Tia Edith lia livros infantis para mim, como ela tinha comprado uns quatro livros do Monteiro Lobato – História do Mundo para as crianças, Reinações de Narinho, Minotauro e Saci -, não só me mantinha atento como estava me dando um forte estímulo para a recuperação, o que aos pouco foi acontecendo. Como a viagem era lenta, durava cerca de sete dias de Santarém para Belém, porque o navio era movido a lenha e tinha que parar em várias cidades ribeirinhas para pegar as grandes achas de madeira, assim, mesmo com a ajuda do rio Amazonas empurrando, o trajeto demorava um pouco.
Desse modo, sem que eu notasse já podia sustentar a cabeça erecta e movê-la de um lado para o outro. Com isso, Tia Edith resolveu me ensinar a ler, como quase não falava, optou por me ensinar a ler em bloco, usando os livros e desenhos que ela fazia como suporte. Só sei que ao chegar em Belém, sabia ler, embora não soubesse escrever. Era um legítimo semi-analfabeto. Por sorte e ao imenso esforço de todos os meus parentes, principalmente dos meus pais e dessa minha Tia Edith, além de um dedicado médico, Dr. Haroldo Barbosa, obtive uma rápida recuperação, pois, entre o início da crise e até a alta, tudo durou cerca de oito meses.
Tenho certeza de que foi a sedutora magia do universo lobatiano e o apelo para o conhecimento que me deram a força interna para lutar pela vida e pelo bem viver. Creio que foi nessa fase que houve a construção do Pedro de hoje. Como tinha adquirido uma incrível velocidade de leitura e compreensão de conjunto, virei um devorador de livros e com a ajuda da minha Tia fui ampliando o domínio sobre o francês, o espanhol e o italiano. Um conhecimento que seria bem útil quando, depois de bem recuperado, voltei a passar as minhas férias de meio do ano e de fim-de-ano em Santarém, hóspede da Tia Zilah, que ao notar o meu gosto pela leitura comprou toda a coleção do Monteiro Lobato, que devorei de uma só feita.
Porém, o importante é em sua casa havia uma excelente biblioteca, e um Tio, Ninito, Antonio, que aos poucos foi abrindo os meus horizontes intelectuais. Primeiro quando descobriu que eu adorava História e me deu de presente dois livros, um do Will Durant e outro do Cesare Cantú. Embora tenha gostado dos dois, como já estava a ler os clássicos, como Xenofonte, Plutarco e tudo o que fazia parte da famosa Coleção de Clássicos Jackson, o resultado foi certa insatisfação e mais curiosidade. Ora, como Tio Ninito era o que na época se chamava de livre pensador, a sua biblioteca tinha de tudo e assim tive os meus primeiros contatos com Marx, Engels e os socialistas utópicos.
Quando rememoro esses fatos, fico espantado com a minha rápida aptidão para o pensamento dialético. O mesmo fascínio e admiração que tive pelo materialismo histórico e dialético naqueles anos em que a minha infância começava a se mudar em adolescência por força das idéias e da imaginação, ainda existem até hoje. Para mim é sempre um deslumbre ver e compreender os caminhos do ser humano na sua marcha para o futuro. Creio que é por causa dessa imensa emoção intelectual que às vezes me perco tentando deslindar o porvir, que para mim é bem claro, sem prestar atenção de que para os outros não é bem assim.
Se alguém me perguntar qual foi o período mais rico e frutífero da minha vida, a resposta é uma só – a etapa que vai da infância à adolescência. E um lugar tem grande destaque, a cidade de Santarém, no Pará, às margens de dois gigantescos e belos rios, o Amazonas e o Tapajós. Santarém é a cidade da família de minha mãe, que a exemplo de todas cidades da região amazônica, vive do e pelo rio. Até suas “estações” climáticas têm o rio como definidor, quando é época de cheia há o inverno, quando há a vazante é tempo de verão. Como Santarém fica em cima de um pequeno monte, a serra Piroca, as cheias só a afetam nos terrenos baixos, nos demais há um alto muro separando a cidade das praias. Por coincidência, os meses de férias escolares se harmonizavam com esse peculiar regime climático, assim, desde bem pequeno convivi com a força desses dois rios.
Rios que não se misturam. O Amazonas tem as águas turvas, cor de barro e uma força que anualmente redesenha o seu leito, ora movendo ilhas, ora criando outras. O Tapajós é verde, com águas cristalinas e praias de uma areia tão fina que faz chiado quando percorrida. É evidente que preferia sair para conhecer aquele rio que me permitia ver os peixes e outros de seus habitantes, principalmente quando entrava nos lagos que ele criava na cheia e permitia que continuassem na seca. Imagina uma criança vendo e convivendo com aquela exuberância de cores e formas, além do sentido mágico das crenças populares, todas herdadas dos indígenas da região. Aí serás capaz de entender porque me foi fácil compreender a dialética da natureza e dela construir o arcabouço do meu pensar. Era (e é) uma dialética em que há espaço para tudo que acontece na Natureza, seja explicável ou não. É interessante, mas, sempre vivi dividido entre o sentido mágico de encarar a natureza e suas leis, a exemplo dos índios, e a visão racionalista, com nítida vantagem para a magia. Uma magia que me fez suportar várias situações adversas e doridas
Foi assim….- II -
Eu fiquei em Belém até meados de 1962, quando me transferi para o Rio por questões políticas, pois, graças às invencionices criadas e escritas por um major do Exército, Jarbas Passarinho, na época responsável pela Superintendência da Petrobrás, mas chefe do Serviço Secreto do Exército, o S2, cópia do Deuxième Bureau da França, que envolveu a mim, diversos amigos e companheiros de luta política universitária num mirabolante plano de desencadear guerrilhas na região. O resultado dessa besteira do major é que ao ser aberto um inquérito na Auditoria Militar de Belém, em que seria processado pela lei de Segurança Nacional da época, foi decidida a minha viagem. Desde àquela época que sabíamos que o major era o autor do “plano”, graças ao coronel Jefferson Cardim, então chefe-do-estado-maior da 8ª Região Militar, sediada em Belém, cujo comandante era o general Taurino de Resende.
É claro que foi um certo transtorno, pois, mesmo sabedor de que poderia sair de Belém a qualquer momento, fora da questão da “guerrilha” do Jarbas, esperava ainda ficar mais um tempo por lá. Fora os trabalhos políticos que estava envolvido, tinha a Faculdade de Direito, a minha atividade como professor de História Contemporânea para o clássico e científico de diversos colégios. Enfim, tinha um bocado de coisas que não estava interessado em abrir mão. Mesmo coisas com a maior cara de futilidade, como o meu grupo de amigos do Central Café.
É claro que foi um certo transtorno, pois, mesmo sabedor de que poderia sair de Belém a qualquer momento, fora da questão da “guerrilha” do Jarbas, esperava ainda ficar mais um tempo por lá. Fora os trabalhos políticos que estava envolvido, tinha a Faculdade de Direito, a minha atividade como professor de História Contemporânea para o clássico e científico de diversos colégios. Enfim, tinha um bocado de coisas que não estava interessado em abrir mão. Mesmo coisas com a maior cara de futilidade, como o meu grupo de amigos do Central Café.
Nesse grupo, sem favor algum, foi que desenvolvi e ordenei todo o conhecimento que vinha acumulando desde os meus 5 anos de idade. Ano em que aprendi a ler e o primeiro livro que li foi o que marcou a minha vida para sempre “A história do Mundo para as crianças” do Monteiro Lobato. A partir desse livro, devorei todos os livros do Monteiro Lobato, o que me ajudou a manter sempre aberta a ligação entre o meu pensamento racional e a minha imaginação. Lá no Central Café fiz o mestrado, o doutorado e a superespecialização em Ciências Sociais, Economia, Política, História e Literatura. Além de ter aprendido grandes lições de solidariedade, amizade e fraternidade entre pessoas cuja identificação se dava a partir do gosto pelos estudos, pelo conhecimento, pela beleza e pela política. Entretanto, hoje sei que só consegui aprender e assimilar com inteligência o que ouvia, via, lia e debatia porque tinha tido aquela base humanística e mágica que só o Monteiro Lobato seria capaz de forjar em uma criança.
A minha relação com Belém ficou truncada, tanto que por lá passei depois de 1964, numa rápida passagem de dois dias em 1965, para obter uns documentos pessoais. Lembro que fui tratado como se tivesse uma doença infetcto-contagiosa por vários dos meus colegas e conhecidos, só o pessoal do Central Café e os companheiros do Partido me trataram com normalidade. O engraçado é que até topei com o Jarbas na rua. Cumprimentamo-nos e já aqui no Rio, semanas depois, soube que ele dizia não ter sabido da minha presença por lá. Assim, desde aquela data não voltei mais ao Pará por duas razões bem simples, egoístas e quase infantis. Lá no meu íntimo, mesmo sem que eu soubesse, havia a preservação de um tempo, de lembranças e da memória dos jogos que foram me formando gente. Talvez até hajam outros motivos, mas, que eu me recorde mesmo e sinta a pressão deles, foram dois os motivos.
Primeiro, porque desejava reter na memória a lembrança de uma região ainda quase intacta e cheia da magia que só a infância produz. Belém, na minha memória está dividida em três bairros: Telégrafo, Umarizal e Batista Campos. No primeiro, na senador Lemos, aprendi as brincadeiras juninas, as primeiras histórias fantásticas e de assombrações, bem como empinar papagaio, jogar bola no campo da igreja de S. Raimundo, assistir as vesperais do Íris e a gostar de história em quadrinho, junto com certa mania para inventar brinquedos. No Umarizal, na S. Jerônimo, em frente ao Hospital dos Marítimos, quase esquina da Alcindo Cacela, há aquele momento muito importante para qualquer homem, a descoberta de si mesmo. Ainda que houvesse muita importância nos jogos e brincadeiras típicas dos garotos daquela época, como jogar bola na rua, rolar pião e jogar peteca, outros ingredientes passavam a fazer parte da minha vida. Estava no ginásio e com isso, pela primeira vez, era obrigado a pensar que existia muita coisa além das brincadeiras, jogos de bola e cinema.
A minha infância e os primórdios adolescentes tiveram nos rios do Baixo-Amazonas, nos igarapés e igapós de Belém, além de algumas pequenas ilhas componentes do arquipélago de Marajó, não só o seu universo de jogos e brincadeiras, mas a base de um sentimento mágico que a floresta cria, em que tudo pode ser possível. Desse modo, como não poderia deixar de ser, escolhi ficar com o realismo mágico da memória e da floresta. Vez por outra, quando me permito, deixo a memória voar sem rumo no tempo, sem a menor preocupação com a cronologia ou estrito relato fatual. Uma das coisas que mais me intriga hoje em dia, é lembrar que junto com amigos atravessava o igapó que ia da São Jerônimo até à Pedreira sem pisar em lama nenhuma.
Belém e a Província do Grão-Pará sempre viveram fora do Brasil, tanto que sua colonização e administração foram feitas diretamente pela Coroa Portuguesa. O Pará e Belém eram um novo Portugal, Santarém, Monte Alegre, Bragança, Óbidos, Alenquer, Vigia e Viseu, por exemplo, nomes comuns lá e cá. Quando o Pará ingressa realmente na História do Brasil, o faz através de uma guerra civil popular, a “Cabanagem”. Que ao ser vitoriosa pelas armas, é derrotada pela cooptação de seu líderes. Mesmo assim, ainda ficou bastante forte o sentimento isolacionista.
É aí que entra a importância do ciclo da borracha, uma importância cultural várias vezes superior ao valor econômico daquele período. Embora tivesse nascido em Belém, em que harmoniosamente se mesclavam as influências do final do barroco português, caminhando para o ecletismo, para o neoclássico e à Art Nouveau da nova era industrial, só fui sentir a força dessa influência ao me aproximar da fase adulta. Foi quando comecei a compreender o peculiar modo de ser e de pensar dos meus contemporâneos. Creio que foi nessa fase, ainda próxima da adolescência, que houve a grande transformação em meu modo de pensar. Um modo de pensar que hoje sei que é uma extensão da magia e encantamento vividos antes.
Para os paraenses era mais fácil e normal estudar na Europa que no Sul do Brasil. Era manter uma tradição, em que Montpellier, Cambridge e Coimbra eram mais do que simples nomes, autênticas extensões de práticas familiares. Um comportamento que perdurou até os anos 50 do século XX .
Com o Golpe de 1964, fora a violência institucional e prática, houve o desmonte de quase tudo aquilo que nos tinha mantido como identidade específica e própria. Belém, continua uma cidade bonita, mas, para mim, parafraseando Drummond, nem chega a ser um retrato na parede. Era impossível reagir à “miamização” política, urbana e lógica dos novos tempos. Bom gosto, cultura humanista, solidariedade e identidade cultural própria fazem parte de tudo o que foi considerado como lixo histórico pelo novo poder.
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Foi assim….-III-
Há também a lembrança de um grupo de amigos, o pessoal do “Central Café”, lá no Central Hotel, composto por professores, escritores, poetas e políticos. O meu ingresso nesse grupo foi feito por intermédio da política, pois, era um dos mais jovens integrantes do PCB, com 18 anos, fui atraído para o grupo por um companheiro e amigo, o poeta Ruy Barata( autor de várias músicas cantadas pela Fafá). Lá reencontrei alguns professores e conheci outros. Foi uma etapa frutífera e prazerosa, num certo sentido a minha real e efetiva Universidade, com graduação, mestrado e doutorado. Foi graças a esses geniais amigos e mestres, como o Benedito Nunes, o Las Casas, Chico Mendes, Napoleão Figueiredo, Raimundo de Souza, que aprendi a ver o mundo e a cultura bem além dos limites do marxismo, além de terem me proporcionado conhecer e me tornar amigo de gente como o Darcy Ribeiro, o Mário Faustino, o Dalcídio Jurandir, o Irawaldyr Rocha, o Joaquim Francisco e outros.
Dentre os meu amigos e companheiros daquela época, houve alguns que sempre foram destacados, seja pela combatividade, talento político e capacidade aglutinadora. O coronel-aviador Jocelyn Brasil, um homem de múltiplas facetas: poeta, compositor, escritor, político, técnico de futebol, comentarista e jornalista esportivo, por exemplo, era um deles. O velho Joça, como afetuosamente nós o chamávamos, era amigo de meu pai e de um outro amigo nosso, o então deputado Cléo Bernardo, que serviu de ponte para a nossa amizade. O Jocelyn era exuberante em quase tudo que fazia, gestos largos, voz potente e alta eram a marca mais visível daquele homem extremamente amigo e afetuoso. Ele também, como não podia deixar de ser, fazia parte da turma do Central.
Mas, como os tempos estavam mudando para pior, tive que vir para o Rio e aí uma outra vida teve início. Uma vida que redundou em alguns anos fora do país. Em 1966 viajei para Buenos Aires e por lá me quedei por quase onze anos. Embora tenha viajado por outras terras e continentes, como os EUA, a Europa, a Ásia e a África, foi na Argentina que fiz a minha base de operação. Foi uma etapa muito criativa da minha vida, pois, por artes da coinciência de estar vivendo numa cidade que tem o mesmo sobrenome que eu, ainda contava com o prazer de todos os dias caminhar pelo tempo, tal a força das arquiteturas Art Nouveau e Art Deco que a gente vê intactas nas ruas, praças, restaurantes, teatros, cafés e bares. Depois de muitas peripécias, deixei-me envolver pelo canto de sereia do Brizola e do Darcy, voltei para o Brasil, primeiro S. Paulo, depois o Rio, que acabei deixando para vir morar no interior do Estado, em Vassouras.
A minha vinda para Vassouras, que é uma cidade histórica próxima ao Rio, depois de uma temporada em S. Paulo e mais um período no Rio de Janeiro, teve como principal motivação a extrema necessidade de morar em um local que me garantisse sobra de recursos para sobreviver com alguma dignidade e qualidade de vida. E também porque me deixava bem distante de algumas tentações, como a política tradicional, com o fim do fase Brizola no Rio, compreendi que era quase como um dinossauro. Vassouras me deu tudo isso, mais tranqüilidade e ar puro. Hoje, quando tenho que ir ao Rio, palavra que fico contrafeito e irritado.
Agora vou te contar um pouco da minha vida. Hoje, quando faço o retrospecto de tudo, fico espantado com que vivi, vi e senti. Pena que não seja cabotino o suficiente para escrever um livro de memórias. Dos meus 17 anos até aos 50 a minha vida foi um grande redemoinho, em que eu não conseguia sair do vórtice. Ora eram questões políticas, ora pessoais.
Tudo começou com o meu engajamento político como estudante secundarista e depois universitário. Como eu era um bocado CDF em matéria de estudos, feliz ou infelizmente ingressei bem cedo na Faculdade de Direito da Univ. Federal do Pará. Até aí nada de mais, pois, outros também ingressaram, a diferença veio pela minha já intensa participação nas lutas políticas, o problema é que depois veio a renúncia do Jânio Quadros e como tinha alguma experiência, fui um dos que participou da Luta pela Legalidade, inclusive mais tarde indo até Porto Alegre, quando conheci Leonel Brizola.
Foi um etapa bem complicada, pois, tinha que coordenar a minha vida política clandestina com as minhas atividades como jornalista, professor de ensino médio e as viagens que fazia. Num certo sentido até que foi positivo, pois, obrigou-me a fazer das tripas coração para ajustar tudo. Como o Brasil, segundo a maioria dos analistas políticos dizia estava se encaminhando para um acelerado crescimento capitalista autônomo, tudo favorecia as novas(sic) formas de organização política, até capaz de produzir a legalidade para o PCB.
O resultado foi a estruturação de um forte grupo de esquerda, a organização do PCB no meio universitário e a reformulação da UAP( União Acadêmica Paraense ). Mais tarde, graças ao meu envolvimento na condução de uma greve geral do movimento universitário em prol da Reforma da Universidade Brasileira, fui eleito vice-presidente de Assuntos Nacionais da UNE, gestão 1962/63, de forma bem indireta, quase biônica, por artes de uma manobra política executada com a aquiescência do vice-presidente, o Luiz Oscar Cunha de Toledo, paulista, da Polop, que aceitou me deixar como vice enquanto viajava pela Europa. Uma viagem que só terminou em julho de 1963 . Com isso e mais outros compromissos políticos a minha vida foi um tal de viajar pelo país que quase me deu know-how para ser guia de turismo.
Um das minhas últimas atividades como vice da UNE foi em Goiânia, maio de 63, quando fomos forçados a suspender um seminário sobre problemas regionais devido aos graves problemas políticos vividos pelo país, problemas gerados pela formidável agitação/pregação golpista do pessoal da UDN, do IBAD e do IPÊS. A minha última ação como vice-presidente da UNE foi em Salvador, Bahia, em junho de 63, quando fui o autor da tese e delegado da UNE no Seminário dos Estudantes do Mundo Subdesenvolvido sobre o tema “Os estudantes e as lutas de libertação nacional”, em que defendia a tese de que a maior contribuição que o mundo subdesenvolvido poderia dar para a Paz Mundial era aprofundar as lutas contra o colonialismo e o imperialismo. O Seminário foi bom, teve a participação de desenvolvidos e subdesenvolvidos, além de alguns políticos baianos e brasileiros, como ACM, Valdyr Pires, San Tiago Dantas e outros.
Foi nesse Seminário que conheci o ACM, na época um feroz deputado estadual pela UDN, mas semi-aliado de João Goulart. Pelos seus pronunciamentos até parecia que a “revolução socialista” teria início na Bahia e sob a sua liderança. Depois do Golpe de 64, com a mesma veemência, passou a denunciar a todos os seus colegas de bancada e outros. Era mais radical que o mais violento militar, tanto que até o pessoal militar tinha medo dele.
Entre 1963 e o Golpe de 64, já fora da vice-presidência da UNE, fiquei como assessor-chefe da UNE e do presidente da entidade, o atual senador paulista e ministro da Saúde, José Serra. 1963 foi o ano chave para a minha vida e, infelizmente, para muita gente. Quando o ano começou, nós, da UNE, estávamos com um baita problemão – o isolamento da entidade de sua base social, os universitários e seus diretórios acadêmicos. Por mais fizéssemos isto, isso ou aquilo, em termos políticos e de atendimento a certos reclamos do universariado, como o aumento dos restaurantes universitários e com o direito de clientela para os estudantes secundaristas, seminários regionais para discutir os problemas do Brasil a partir de cada realidade regional e o nosso engajamento na luta pelas Reformas de Base (Reforma Agrária, Bancária, Fiscal e Cambial, por exemplo), a UNE continuava isolada.
Até que um dia, era um sábado de janeiro, conversando com mais dois diretores da UNE sobre a última encíclica do Papa João XXIII, a “Pacem in Terris”( Paz na Terra), em que abordávamos a importância daquele documento para um novo re-direcionamento da Igreja e de que, mais do que qualquer outro fato, era algo merecedor de um Prêmio Nobel da Paz. Assim pensamos e assim fizemos. Imediatamente mandamos fazer uma grande faixa para ser colocada na fachada do prédio, Praia do Flamengo 132, indicando o Papa João XXIII para o Prêmio Nobel da Paz. O Geraldo Rocha Moraes, vice-presidente e o Mafra, juntos com a Maria Angélica, militante e dirigente da Ação Popular, foram inscansáveis na consolidação dessa proposta. Uma proposta que nos tirou do isolamento e nos deu alento para o que ainda faltava ser feito.
Gastamos o resto do sábado e o domingo em articulações e conversas com o meio eclesiástico progressista (padres Vaz, Cardonnel, Josaphat e alguns bispos novos, como Valdyr Calheiros) e setores laicos da Igreja, mas com grande força como Tristão de Athayde, deputados federais Clóvis Ferro Costa e Gabriel Passos. Na segunda-feira, às 5 horas da manhã colocamos a faixa com o lançamento de João XXIII para o Prêmio Nobel da Paz, muito bem pintada e desenhada pelo Andrei Salvador, já contando com o apoio desse pessoal católico, o que incluía a JUC e a JEC. Foi o fim de nosso isolamento.
Esse isolamento era o resultado da extrema irritação do meio acadêmico estudantil pelo insucesso da “Greve de 1/3”, àquela greve em que pretendíamos através da participação de 1/3 dos universitários em todos os órgãos colegiados da Universidade como o primeiro movimento para uma ampla Reforma Universitária. Uma Reforma que incluía o aumento dos cursos noturnos nas Universidades públicas como forma de atender à demanda dos estudantes mais pobres, modificação do curso médio (hoje seria o 2º grau) com o seu aumento para cinco anos, com os três últimos anos servindo como referência para o ingresso nos cursos superiores mediante a análise do rendimento escolar global do estudante.
Uma reforma que, também, pretendia fazer com que os dois primeiros anos na Universidade fossem básicos e comuns a todos, independente do curso a ser seguido depois, pois, acreditávamos que só através de uma educação humanista, universal e regionalizada, ao mesmo tempo, seria possível fazer da Universidade Brasileira um centro de excelência para o pensar e para o fazimento da Ciência. Como a UNE daquela época tinha a sua força extraída da grande massa estudantil organizada em faculdades e diretórios acadêmicos como expressão dessas unidades escolares, ficar sem os diretórios ou centros acadêmicos era o mesmo que ficar sem ar.
Com a campanha de indicação do Papa João XXIII para o Prêmio Nobel da Paz, não só saímos do isolamento, como ampliamos o nosso arco social. Pena que o Papa tenha morrido antes de termos conseguido concluir a campanha, pois, se houve alguém merecedor desse Prêmio, esse alguém foi o Papa João XXIII, que já havia brindado o mundo com uma encíclica revolucionária em seu conteúdo de apoio às lutas dos pobres e despossuídos, a “Mater et Magistra” (Mãe e Mestra), de 1961, a instalação do “Concílio Vaticano II” em 1962 e a “Pacem in Terris”, 1963. O Papa João XXIII morreu em junho de 1963.
Aquele ano foi pleno de confusões e lições. No campo político nacional vivíamos um quadro de extrema agitação política e social desencadeado pela direita e por setores nacionalistas e progressistas da sociedade. A direita, sob o comando de Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Jânio e Ademar de Barros, ostensiva e publicamente financiada pela embaixada dos EUA, chefiada por Lincoln Gordon, fazia de tudo. Criou dois Institutos de Pesquisa para encobrir as atividades da CIA e agrupamentos dos serviços secretos de nossas forças armadas em prol de um Golpe de Estado, o IPÊS (Instituto de Pesquisas Sociais, sob a direção do então Coronel Golbery do Couto e Silva e do então embaixador e banqueiro brasileiro Roberto Campos) e o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática, sob a direção de políticos como Bilac Pinto, Magalhães Pinto, etc..). Com um, o IPÊS, produzia textos “teóricos” de propaganda anticomunista e antinacionalista. Com o outro, o IBAD, desenvolvia as milionárias campanhas políticas de seus filiados e simpatizantes, tanto que na eleição de 1962, só em Minas Gerais elegeu mais de 10 deputados federais.
Os setores nacionalistas e populares, tal qual hoje, só dispunham da muita vontade, da coragem e da liderança pessoal de alguns políticos, como o então deputado federal do PTB gaúcho, Leonel Brizola. É bem verdade que naquela época o movimento sindical tinha mais unidade e lideranças de grande representatividade organizados na Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), que aglomerava todas as Federações sindicais de trabalhadores e com isso apresentava um alto grau de combatividade e poder de ação reivindicativa. A UNE, novamente forte pela base, tinha grande expressão política, pois, ao mesmo tempo em que lutava por questões específicas, era capaz de mobilizar e ser mobilizada para as grandes lutas democráticas e sociais do povo brasileiro. E assim, esse grupo, composto da CGT, da UNE e da Frente Parlamentar Nacionalista, organizou-se naquilo que ficou conhecido como Frente de Mobilização Popular (FMP), não só como meio de combater ao que era feito pela direita, mas, principalmente, para desencadear uma grande campanha de esclarecimento popular a respeito das Reformas de Base. A nossa campanha teria início em abril/maio de 1964, com comícios em Recife, Fortaleza, Belém, Salvador, B. Horizonte, Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro.
Para piorar o quadro, além das bobagens feitas pelos Sargentos, que se rebelaram em Brasília e do clima de instabilidade militar, com semanais boatos de golpes, a inflação e a carestia minavam os salários dos trabalhadores, que sempre tentavam garantir a reposição dos valores reais perdidos. Greves, insatisfação militar, intensa boataria e propaganda golpista eram o caldo de cultura em que militávamos.
Para nós, que acreditávamos na necessidade daquelas Reformas como meio de tirar o país do atoleiro do subdesenvolvimento, de ampliar as conquistas democráticas e sociais, de eliminar os resquícios de uma sociedade semifeudal, que era o latifúndio e suas relações de produção, quando aconteceu o que aconteceu, foi um choque e uma perplexidade. Só mais tarde é que foi possível compreender que muitas daquelas teses estavam equivocadas, pois, o assim como a desigualdade regional, o latifúndio também era uma fenômeno capitalista, jamais uma reminiscência semi-feudal. O desenvolvimento que os países latino-americanos podem ter é aquilo que Gunder Frank chamou de o lúmpem-desenvolvimento de uma lúmpem-burguesia.
Olhar para trás é algo mais difícil do que aparenta. O normal é a gente pensar que basta recordar e pronto. Este processo não é o problema. Ele surge quando os fatos, as datas e as pessoas começam a se misturar, criando situações e cenários bem distintos do que aconteceu mesmo. A questão é tentar discernir o que foi real e concreto, daquilo que já começamos a fantasiar e ver com os olhos do sonho. É uma garimpagem bem dura, pois, gostando ou não, a gente vai revivendo tudo de novo, o bom, o ruim, a alegria, as tristezas e o que é pior, as frustrações. Mas, tem que se seguir em frente, pois, de certa maneira há a sensação de que conseguimos corrigir algumas coisas. Pelo menos, lá dentro da gente, há uma arrumação e limpeza. Ordena-se a memória, com suas emoções e fantasias, com a diferença que nada pode ser catalogado e arquivado em fichários, não, tudo fica em ordem, mas, junto tal como aconteceu. Limpa-se a alma com essa “revivência” e fica a certeza de que tudo aconteceu porque não podia ser de outra forma.
O grupo do Central Café, no Central Hotel, na avenida Pres. Vargas, antiga 15 de Agosto, teve uma importância decisiva nos rumos da minha vida. Não que tivesse me dito o que fazer, mas, por ter me estimulado ao máximo a fazer do conhecimento uma base para pensar e agir. O meu orgulho é que fui o primeiro quase adolescente a ser aceito pelo grupo e depois, por minha influência e insistência, outros amigos passaram a freqüentar a roda. Heitor Dourado, Ramiro Bentes, Mário Sérgio, Chico Costa, André Nunes, etc., foram alguns desses amigos que passaram a ver naquela roda um importante instrumento de aprendizado. É claro que houve algo que quase justificou o meu ingresso no grupo, o fato de ter sido escolhido pela profª Maria Anunciada Chaves, diretora e professora de História do Colégio Moderno, para fazer o curso do CAPES e assim virar um professor. Foi um curso puxado, pois tinha aulas das 18 às 22 horas todo dia e aos sábados à tarde toda. Só tivemos dois feriados – o Primeiro de Maio e o Natal. Nessa época eu estava com 17 anos e isso deixou muita gente espantada. Porém, o Chico, o Ruy, o Jocelyn e o Benedito que já me conheciam de andanças políticas nacionalistas no movimento secundário achavam bem normal. E foi assim, com o status de professor de ensino médio que me credenciei para o grupo. Um grupo que, além das discussões sobre tudo (política, literatura, filosofia, sociologia e antropologia), ensinou-me o gosto pela ironia. Um gosto que até hoje perdura.
O meu ingresso no PCB foi bem interessante, pois, está vinculado a um documento de organização de um “partido” político estudantil, a Frente Nacionalista e Patriótica. Não consigo me lembrar como, mas, o citado projeto de “partido” chegou às mãos do Luiz Alfredo Oliveira, que entrou em contato comigo e sem mais nem menos, fez-me uma pergunta que não esqueci até hoje”
- Pedro, você sabe o que ‘centralismo democrático” ? É claro que a minha resposta foi negativa, pois, embora fosse um voraz leitor de toda a literatura nacionalista e até de alguns livros que falavam sobre o materialismo histórico e dialético, jamais tinha lido algo sobre a estrutura organizacional de um Partido Comunista. E o tal projeto era sem tirar nem por, quase que uma cópia simplificada dos estatutos do PCB. Foi o que soube alguns meses depois, assim que li sobre o PCB. Fiquei espantado, pois, na minha cabeça o que interessava era montar um partido em que a maioria realmente detivesse o comando político-administrativo da organização, como lhe assegurasse mais flexibilidade na ação e nas tomadas de decisão. Mais tarde, em conversa com o Humberto Lopes, secretário-político do Partido em Belém, descobri que havia um grande espanto pelo fato d’eu ter conseguido chegar à essência da forma organizativa do PCB sem nunca ter lidado com algo parecido ou similar.
O PCB do Pará era bem interessante em termos de sua composição social, pois, ao mesmo tempo em que tinha uma forte base no Porto de Belém e em algumas pequenas fábricas, estava cheio de pequeno-burgueses. Todos pessoas geniais em termos de solidariedade e capacidade de luta, afinal de contas, o PCB era clandestino e fora-da-lei. Advogados, juízes, médicos, engenheiros, funcionários públicos e universitários compunham o universo organizado da esquerda paraense, embora houvesse a utopia socialista do Cleo Bernardo e grupos que tentavam criar o PCdoB. Uma situação bem esquisita, pois, quase todo mundo conhecia e gostava do João Amazonas, um paraense de boa cepa.
O grupo do Central Café, no Central Hotel, na avenida Pres. Vargas, antiga 15 de Agosto, teve uma importância decisiva nos rumos da minha vida. Não que tivesse me dito o que fazer, mas, por ter me estimulado ao máximo a fazer do conhecimento uma base para pensar e agir. O meu orgulho é que fui o primeiro quase adolescente a ser aceito pelo grupo e depois, por minha influência e insistência, outros amigos passaram a freqüentar a roda. Heitor Dourado, Ramiro Bentes, Mário Sérgio, Chico Costa, André Nunes, etc., foram alguns desses amigos que passaram a ver naquela roda um importante instrumento de aprendizado. É claro que houve algo que quase justificou o meu ingresso no grupo, o fato de ter sido escolhido pela profª Maria Anunciada Chaves, diretora e professora de História do Colégio Moderno, para fazer o curso do CAPES e assim virar um professor. Foi um curso puxado, pois tinha aulas das 18 às 22 horas todo dia e aos sábados à tarde toda. Só tivemos dois feriados – o Primeiro de Maio e o Natal. Nessa época eu estava com 17 anos e isso deixou muita gente espantada. Porém, o Chico, o Ruy, o Jocelyn e o Benedito que já me conheciam de andanças políticas nacionalistas no movimento secundário achavam bem normal. E foi assim, com o status de professor de ensino médio que me credenciei para o grupo. Um grupo que, além das discussões sobre tudo (política, literatura, filosofia, sociologia e antropologia), ensinou-me o gosto pela ironia. Um gosto que até hoje perdura.
O meu ingresso no PCB foi bem interessante, pois, está vinculado a um documento de organização de um “partido” político estudantil, a Frente Nacionalista e Patriótica. Não consigo me lembrar como, mas, o citado projeto de “partido” chegou às mãos do Luiz Alfredo Oliveira, que entrou em contato comigo e sem mais nem menos, fez-me uma pergunta que não esqueci até hoje”
- Pedro, você sabe o que ‘centralismo democrático” ? É claro que a minha resposta foi negativa, pois, embora fosse um voraz leitor de toda a literatura nacionalista e até de alguns livros que falavam sobre o materialismo histórico e dialético, jamais tinha lido algo sobre a estrutura organizacional de um Partido Comunista. E o tal projeto era sem tirar nem por, quase que uma cópia simplificada dos estatutos do PCB. Foi o que soube alguns meses depois, assim que li sobre o PCB. Fiquei espantado, pois, na minha cabeça o que interessava era montar um partido em que a maioria realmente detivesse o comando político-administrativo da organização, como lhe assegurasse mais flexibilidade na ação e nas tomadas de decisão. Mais tarde, em conversa com o Humberto Lopes, secretário-político do Partido em Belém, descobri que havia um grande espanto pelo fato d’eu ter conseguido chegar à essência da forma organizativa do PCB sem nunca ter lidado com algo parecido ou similar.
O PCB do Pará era bem interessante em termos de sua composição social, pois, ao mesmo tempo em que tinha uma forte base no Porto de Belém e em algumas pequenas fábricas, estava cheio de pequeno-burgueses. Todos pessoas geniais em termos de solidariedade e capacidade de luta, afinal de contas, o PCB era clandestino e fora-da-lei. Advogados, juízes, médicos, engenheiros, funcionários públicos e universitários compunham o universo organizado da esquerda paraense, embora houvesse a utopia socialista do Cleo Bernardo e grupos que tentavam criar o PCdoB. Uma situação bem esquisita, pois, quase todo mundo conhecia e gostava do João Amazonas, um paraense de boa cepa.
Entretanto, com todas as dificuldades oficiais e oficiosas o Partido tentava agir. O problema é que aquele agir tinha muito de mecanicista e quase um auto-ilusionismo, pois, acontecesse o que acontecesse, todos os informes e documentos do Partido, quase sem exceção tinham como abertura uma frase que ficou famosa: “Mais uma vez foi confirmada a justeza de nossa linha política……”. E isso, mesmo depois de flagrantes e desmoralizadoras derrotas políticas. O erro era dos companheiros ou do Partido? Hoje, várias décadas depois, sei que o erro era da falsidade da concepção política que grassava em todo o mundo, pois, vendo o mundo a partir de uma simples dicotomia entre proletariado e burguesia, não era possível compreender a realidade tal qual ela se mostrava, sendo que em algumas vezes a realidade, coitada, era acusada de tudo. E assim de uma lição ali e outra acolá, a vida corria com a força dos rios que formam a nossa região, mas, que quase sempre nos iludem com a plácida aparência de seus leitos. E eu tentava fazer o mesmo.
É claro que houve algumas namoradas oficiais, só que Belém ainda era uma cidade pequena e todas temiam um compromisso com um famigerado comunista e para piorar sem fortuna ou um grande emprego. Entretanto, já sabia o que era a paixão e a doença, e pressentia o que poderia ser o Amor. Desse modo, treinando para o amor, fui levando a minha vida. Uma vidinha que só foi interrompida quando a minha presença em Belém ficou impossível por questões políticas e aí fui forçado a vir para o Rio também, onde todos os meus familiares já moravam há uns cinco anos, graças às mentiras e intrigas do major Jarbas Passarinho. Uma das mais perfeitas e acabadas toupeiras que já lidei, além de profundamente ambicioso, arrogante e sem ética alguma.
Ele, após ter ordenado a invasão do Sindicato dos Petroleiros e Empregados da Petrobrás à procura de provas de ações subversivas, encontrou o que queria sem muito esforço, pois, segundo o falecido coronel Jefferson Cardim, que era o Chefe do Estado Maior da 8ª Região Militar, sediada em Belém, os documentos tinham sido escritos pelo S2 (a Segunda Secção, o serviço secreto do Exército), comandada por Jarbas. Nesses documentos eu era apresentado como Comandante de um grupo de 15 mil guerrilheiros-camponeses, armados com armas tchecas e soviéticas. Foi aberto um IPM e fui chamado para conversar com comandante da RM, o general Taurino Resende, que fazia questão de me conhecer. A conversa foi bem engraçada, pois, perguntei ao general se ele me conhecia e ele disse que sabia das minhas posições políticas e profissionais (professor, jornalista e estudante de Direito). Perguntei-lhe se me considerava burro, ele disse que não e quis saber porque eu estava fazendo aquela pergunta. Disse-lhe, mais ou menos o seguinte: “General, o ativo das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) na região amazônica não ultrapassava os 5 mil homens em armas (fuzís da 2ª Guerra Mundial). Ora, se eu, comandava e treinava 15 mil homens armados com o que havia de mais moderno e versátil em armas leves, como os fuzís AK47, quem estaria fazendo perguntas a quem ?” O General riu muito e me mandou embora, dizendo que iria atrasar o máximo que pudesse o desenvolvimento do IPM e que mandaria averigüar sobre o que eu tinha dito sobre o Major Jarbas. Aconselhou-me a sair de Belém, assim o major ficaria mais calmo e ele poderia fazer o que estava me dizendo. A bem da verdade, graças aos empecilhos e entraves provocados pelo General e pela Auditoria Militar de lá, só em meados de 1963 é que foi instaurado o processo, em que fui incurso na Lei de Segurança Nacional. Tudo porque o Jarbas acreditava que eu tinha bloqueado a sua possível candidatura ao Governo do Pará pelo PSB, do qual era secretário, em 1960. Um fato que só existia na cabeça e na ambição dele.
É claro que houve algumas namoradas oficiais, só que Belém ainda era uma cidade pequena e todas temiam um compromisso com um famigerado comunista e para piorar sem fortuna ou um grande emprego. Entretanto, já sabia o que era a paixão e a doença, e pressentia o que poderia ser o Amor. Desse modo, treinando para o amor, fui levando a minha vida. Uma vidinha que só foi interrompida quando a minha presença em Belém ficou impossível por questões políticas e aí fui forçado a vir para o Rio também, onde todos os meus familiares já moravam há uns cinco anos, graças às mentiras e intrigas do major Jarbas Passarinho. Uma das mais perfeitas e acabadas toupeiras que já lidei, além de profundamente ambicioso, arrogante e sem ética alguma.
Ele, após ter ordenado a invasão do Sindicato dos Petroleiros e Empregados da Petrobrás à procura de provas de ações subversivas, encontrou o que queria sem muito esforço, pois, segundo o falecido coronel Jefferson Cardim, que era o Chefe do Estado Maior da 8ª Região Militar, sediada em Belém, os documentos tinham sido escritos pelo S2 (a Segunda Secção, o serviço secreto do Exército), comandada por Jarbas. Nesses documentos eu era apresentado como Comandante de um grupo de 15 mil guerrilheiros-camponeses, armados com armas tchecas e soviéticas. Foi aberto um IPM e fui chamado para conversar com comandante da RM, o general Taurino Resende, que fazia questão de me conhecer. A conversa foi bem engraçada, pois, perguntei ao general se ele me conhecia e ele disse que sabia das minhas posições políticas e profissionais (professor, jornalista e estudante de Direito). Perguntei-lhe se me considerava burro, ele disse que não e quis saber porque eu estava fazendo aquela pergunta. Disse-lhe, mais ou menos o seguinte: “General, o ativo das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) na região amazônica não ultrapassava os 5 mil homens em armas (fuzís da 2ª Guerra Mundial). Ora, se eu, comandava e treinava 15 mil homens armados com o que havia de mais moderno e versátil em armas leves, como os fuzís AK47, quem estaria fazendo perguntas a quem ?” O General riu muito e me mandou embora, dizendo que iria atrasar o máximo que pudesse o desenvolvimento do IPM e que mandaria averigüar sobre o que eu tinha dito sobre o Major Jarbas. Aconselhou-me a sair de Belém, assim o major ficaria mais calmo e ele poderia fazer o que estava me dizendo. A bem da verdade, graças aos empecilhos e entraves provocados pelo General e pela Auditoria Militar de lá, só em meados de 1963 é que foi instaurado o processo, em que fui incurso na Lei de Segurança Nacional. Tudo porque o Jarbas acreditava que eu tinha bloqueado a sua possível candidatura ao Governo do Pará pelo PSB, do qual era secretário, em 1960. Um fato que só existia na cabeça e na ambição dele.
O Rio de Janeiro não me era estranho. Volta e meia por ali passava uns dias com meus pais e irmãos. Gostava da cidade e para minha sorte continuava sendo jornalista, além de manter os mesmos afazeres políticos de antes, a diferença era que naquele momento deixara de ser um simples político provinciano para viver sob os holofotes da política nacional. A exemplo de todos, freqüentava Copacabana, Lapa e Ipanema. Comia no Lamas, bebia no Zeppelin e Jangadeiros. Adorava andar de bonde e circular pelo centro da cidade, aliás todos os jornais tinham suas redações ali no centro. Como trabalhava em três – “Última Hora”, “O Jornal” e “Correio da Manhã”, mais familiar o centro me ficava. Hoje, infelizmente, resta pouca coisa daquela fase. Refeito dos antigos dissabores e cheio de otimismo no futuro e no progresso do país, tentava me firmar como jornalista e político.
Creio que só obtive algum sucesso no primeiro objetivo, o segundo tinha muitos embaraços legais e ideológicos para ser uma conquista fácil, mesmo para mim, membro da direção nacional do PCB. Aliás, creio que as maiores dificuldades viriam desse mesmo núcleo dirigente, pois, notara que a maioria estava desgostando da minha “promoção”, por ser, segundo esse grupo, muito jovem e oriundo de uma região inexpressiva em termos político-econômicos. E para piorar tudo, meses depois de estar no Rio, recebi o encargo de dirigir politicamente os grupos do PCB que atuavam na UNE e em todo movimento juvenil do partido no país.
Assim que cheguei ao Rio, apresentei-me no CC, lembro que falei com o Granja e com o Giocondo, que logo me colocaram na Secretaria de Massa para dar apoio como assistente a alguns núcleos da CNTI e metalúrgicos. Não demorei muito por lá, pois, fui chamado para conversar com a Zuleika e o Prestes, sendo logo deslocado para a Secretaria Política da Fração da UNE. Essa “promoção”, ainda que fosse competência e do livre arbítrio do CC, criou-me alguns problemas com certos companheiros no Rio, como ex-responsável pela fração e seus amigos do Comitê Regional, que ficaram irritados em não terem podido discutir sobre nada. A hostilidade do Tonico permaneceu até hoje, embora tenha sido bem aceito pelos demais membros da Fração, como a Ely Diniz, a Aspásia Bandeira, o César Guimarães, o Almir e os diretores da UNE que eram do Partido. Como o meu modo de ser poderia ser considerado “low profile”, sempre com mais ênfase no trabalho coletivo e organizado, aos poucos foi possível o crescimento da importância política do PCB no movimento universitário, tanto que no Congresso da UNE de 1963 a diretoria da entidade ficou dividida em termos iguais e tudo indicava que faríamos o futuro presidente da UNE, o ex-vice-presidente da UNE 62/63, presidente da UEB, Carlos Alberto Oliveira dos Santos.
Janeiro e fevereiro de 1964 voaram e com eles mais e mais ficava sombrio o quadro político. No mês de março estava marcado um seminário de estudos regionais que tinha organizado e providenciado tudo, o I Seminário de Estudos da Amazônia, em Manaus. Embora o quadro institucional apresentasse algumas fraturas, manteve-se o ISEA e assim, eu, o Serra e outros dirigentes da UNE voamos para Manaus, lá chegando no dia 21 de março, sendo que eu já estava por lá.
Technorati Marcas: PCB,UNE,Taurino de Resende,Carlos Alberto Oliveira dos Santos,UEB,Prestes,Alfredo Oliveira,Zuleika,Granja,Manaus,ISEA
quinta-feira, 13 de janeiro de 2011
Aumento de chuvas não é desculpa para caos nas cidades, diz especialista
Os governos não devem fugir de responsabilidade sobre tragédias causadas pela chuva e o aumento da incidência de tempestades em consequência das mudanças climáticas globais não pode servir de desculpa para os governos não agirem a fim de evitar enchentes, na avaliação da diretora do Centro de Pesquisas sobre a Epidemiologia de Desastres (Cred), de Bruxelas, na Bélgica, Debarati Guha-Sapir.
Para a especialista, questões como infraestrutura, ocupação urbana, desenvolvimento das instituições públicas e nível de pobreza e de educação ajudam a explicar a disparidade no número de vítimas entre as enchentes na Austrália e no Brasil.
Segundo ela, infelizmente, nada pode ser feito até que a chuva cesse. “Não é possível fazer nada agora para que não chova mais. Mas temos que buscar os fatores não ligados à chuva para entender e prevenir desastres como esses [das enchentes no Brasil e na Austrália]”, disse.
“Dizer que o problema é consequência das mudanças climáticas é fugir da responsabilidade, é desculpa dos governos para não fazer nada para resolver o problema”, acrescentou Debarati Guha-Sapir.
O Cred vem coletando dados sobre desastres no mundo todo há mais de 30 anos. A especialista afirmou que as consequências das inundações são agravadas pela urbanização caótica, pelas altas concentrações demográficas e pela falta de atuação do Poder Público.
“Há muitas ações de prevenção, de baixo custo, que podem ser adotadas, sem a necessidade de grandes operações de remoção de moradores de áreas de risco”, disse a especialista, mencionando como exemplo proteções em margens de rios e a criação de áreas para alagamento (piscinões). Debarati Guha-Sapir disse que a responsabilidade sobre as enchentes não deve recair sobre a população. “Isso é um dever das autoridades. Elas não podem fugir da responsabilidade”, afirma.
quarta-feira, 12 de janeiro de 2011
Bertha Becker propõe uma revolução para salvar a Amazônia
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A vaidosa senhora de 76 anos chega sorridente a uma sala cheia de estudantes na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Com sotaque carioca carregado, resigna-se com os problemas no microfone, acende um cigarro e avisa aos incautos que gosta de fazer piada. Os estudantes não entendem a ironia nem o despojamento.
Mas, assim que começa sua palestra na reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), eles percebem por que Bertha Becker é uma das cientistas mais respeitadas do Brasil.
Ela estuda a Amazônia há 30 anos, e há pelo menos 10 defende uma revolução científica para salvar a floresta e ao mesmo tempo levar desenvolvimento e riqueza para seus 20 milhões de habitantes.
A exemplo do deputado Ângelus Figueira, ela também acha que criar gado não é crime , ma só acha que na Amazônia não é o melhor lugar para fazê-lo.
Leia a entrevista com Bertha Becker:
A sra. diz o que o Brasil passa hoje pela litoralização. O que significa?
Durante o Governo de Juscelino Kubitschek e o programa de integração nacional, houve ênfase na interiorização, com a criação de Brasília, as estradas e o avanço das telecomunicações na Amazônia. A Amazônia mudou muito, inclusive com telecomunicações e indústria. Da década de 90 até agora, o que domina é essa logística que não atinge a Amazônia nem o interior do Nordeste. Ela é voltada para exportação e dominada pelas concessionárias privadas, como a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e a agroindústria, o que acentuou a litoralização, abandonou a interiorização e se concentrou no eixo Centro-Sul.
A CVRD e a agroindústria têm projetos na Amazônia.
São pontuais. Carajás, da CVRD, é da mina até o litoral. A exportação mantém o padrão histórico sob o qual fomos forjados, produzindo matéria-prima para mercados globais. Éramos ilhas voltadas para o exterior. É o que acontece novamente. A preocupação com a interiorização foi sustada.
Por necessidade ou escolha?
Houve a mudança da natureza do Estado, em que há privatização intensa com concessões. Ele delega até serviços para o setor privado, que tem o interesse de exportar a produção, enquanto o Estado tinha intenção de interiorizar o povoamento. Enquanto isso, a Amazônia está isolada. Me irrito porque todo mundo do governo enche a boca para falar do valor estratégico da Amazônia, mas ações concretas são muito pequenas.
Qual é o impacto para os 20 milhões de habitantes da Amazônia?
Um movimento de preservação que foi, sem dúvida, um freio no desenvolvimento regional. Claro que era necessário, e é necessário, porque o movimento de interiorização foi violento. Mas talvez não em tão grande extensão, e não tão preservacionista. Proponho uma revolução científica e tecnológica para a Amazônia porque o Brasil já fez umas boas e importantes, como a exploração do petróleo em águas profundas, transformação da cana em álcool e a revolução do cerrado.
É possível unir essa revolução com a proposta ambientalista?
Deve unir. É uma obrigação da ciência e da tecnologia e do Estado brasileiro. O Brasil tem esse desafio e deve saber enfrentá-lo. O desafio maior é encontrar formas adequadas de utilizar o patrimônio natural que promovam a inclusão social, que é o grande problema da Amazônia e do Brasil, sem destruir a natureza. Não é uma revolução positivista. Ela tem de enredar várias disciplinas, com a participação da sociedade. É possível.
Como?
Fiz um estudo para o Ministério da C&T e propus a formação de cadeias tecnoprodutivas em biodiversidade, que viriam desde o âmago da floresta, agregando valor gradativamente, portanto atendendo à população local, até as indústrias nas áreas urbanas, em etapas. Elas passariam pelos centros de biotecnologia. Tem um, em Manaus, que está praticamente parado, e tem de ser posto para funcionar. Há pequenas e médias empresas em Manaus, Belém e Rio Branco que utilizam a biodiversidade para fazer cosméticos: óleos, essências, sabonetes, batons. A biodiversidade é uma coisa fantástica.
Tal produção não estaria aquém do que o governo espera de retorno financeiro da Amazônia?
O governo não tem nada que esperar. A Zona Franca de Manaus é uma potência econômica, o quarto PIB metropolitano do Brasil. O Pará tem minério que alimenta as fábricas de alumínio a baixo custo. A energia da Amazônia, de Tucuruí, é mandada para o Nordeste e para o Sudeste. A Amazônia produz riqueza que é exportada. O governo tem mais é que dar estímulo para que essas coisas se desenvolvam. Organizar as cadeias, assistir os pequenos e médios empresários locais com fundos da inovação, articular pesquisa em empresa. A biodiversidade não é só para dermocosmética não, ela é também para nutricêutica, alimentos que não são remédio mas que dão bem-estar físico, como o guaraná e o açaí. Além dos fitoterápicos. Dizem: “Ah, não podemos competir com as grandes farmacêuticas mundiais”. É verdade. Mas temos um grande problema de saúde pública. Não se pode usar pra isso?
O que a gente vê na Amazônia é o incentivo à produção extensiva de grãos e ao gado.
Isso não é Amazônia, é Centro-Oeste, que se expande em frentes violentas. A questão ambientalista tem uma face legítima e uma geopolítica. Só se a floresta tiver valor econômico que poderá enfrentar as commodities. Os caras preferem tirar madeira, expandir a soja e derrubar a floresta. Mas se ela for valorizada economicamente, a situação muda de figura.
Essa proposta de cadeias produtivas é contrária ao modelo econômico baseado na agropecuária.
Longe de mim dizer que não devemos plantar soja e criar gado. É uma tradição. Na última década, o que sustentou a economia brasileira foi o setor. Mas acho que não precisa derrubar a floresta para isso, né? A soja está no Maranhão, no Piauí, na Bolívia, em todo o Centro-Oeste, na Bahia. Não chega? Há um imenso cinturão “soja-boi” que cerca a floresta, que está se expandindo e vai se expandir mais quando o IIRSA estiver implantado. Vamos destruir a floresta para plantar soja? Temos experiências históricas trágicas da monocultura. Já deveríamos ter aprendido com isso. O país viveu de ciclos monoprodutivos. Borracha. Café. Cana-de-açúcar. Café de novo. Algodão. E depois, quando cai o preço? É o que está acontecendo com a soja. Uma desgraça. Nossa história é marcada pelas monoculturas cíclicas para atender ao mercado externo. Tem de atender? Tem. Mas tem de pensar no mercado interno, nos milhões de brasileiros que estão em péssima condição social. Tem de pensar na logística do pequeno, não só na dos grandões.
É dar valor à floresta em pé?
Exatamente. Aqui entram as cadeias produtivas, quando se pensa uma logística própria para a Amazônia.
Essas cadeias parecem voltadas mais à população rural.
Não, não. É para integrar com a indústria. Nada de “ruralzinho” porque isso não vai dar certo na Amazônia. E não adianta fazer coisa pequena e dispersa que ela não enfrenta a soja e a carne. Em áreas de produção de alimentos, por exemplo, acho que tem de se organizar vilas industriais, uma coisa grande, com cem colonos, como cooperativas, com estradas, acesso à cidade e à circulação. E é mais fácil para o governo ajudar, porque pulverizar dinheiro para 700 assentamentos na mata não tem futuro, né? Você acha que tem?
E a exploração da madeira?
A madeira já é exportada, e muito. Vai para o Sul do Brasil e também para o exterior. Acontece que o Peru faz contrabando da madeira extraída pelo Rio Jamari: pela fronteira, manda para Iquitos e, de lá, é exportado por navio pelo Amazonas como se fosse madeira brasileira, entendeu?
É ter certeza de que aqui não existe fiscalização.
É, não existe. Por isso que acho que essa idéia de manejo florestal através de concessão de floresta pública é muito arriscada. Teoricamente seria muito bom, porque madeira é o produto mais abundante da floresta, então explorar com manejo, tudo bonitinho, seria ótimo. Mas o grande problema do Brasil é que não há fiscalização e cumprimento da lei. Então como você pode conceder as florestas sem fiscalização do manejo? É difícil.
O Inpe está desenvolvendo um sistema de monitoramento dessas áreas por satélite, que mostra a rarefação da cobertura.
Ótimo, então é isso. Porque tem um Sipam que, na verdade, até agora não conseguiu controlar nada. É uma crise institucional no Brasil, sabe? É coisa muito séria mesmo. Com uma década de política ambiental, nós não podemos dizer que a situação do povo amazônico melhorou. Isso significa que o modelo tem de ser modificado. E eu acho que tem de ser através da compatibilização. Produzir sem destruir.
Não é o que se tenta fazer hoje?
Mas cadê? Onde? Está se tentando pelo manejo das florestas públicas? Eu quero cadeias produtivas, que não destruam a floresta, que envolvam a população. Talvez até os índios. Eles estão sem trabalho. Houve a luta para a demarcação dos territórios, de suas terras. Essa luta foi vitoriosa para grande parte. E daí? E depois? Como se usam essas terras? Eles estão sem plano nenhum. Isso é muito perigoso porque acabam onde? Na coca. É um risco.
Com isso a gente entra em outra discussão sobre quanto da floresta é necessária em pé e quanto se pode derrubar, algo que não se tem uma conclusão pois o debate está muito...
Polarizado. É verdade. Isso os cientistas deveriam fazer dentro do sentido da minha revolução científico-tecnológica. Eu não sou economista. Sou geopolítica. Posso falar sobre a valorização da Amazônia, não sobre a valoração, pois isso é coisa da economia e ninguém resolveu. E eu não vou ficar parada esperando. Você não acha?
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