segunda-feira, 11 de julho de 2011

Carta do Cacique Mutua (dos Povos Xavantes) a todos os povos da Terra"


Carta do Cacique Mutua (dos Povos Xavantes) a todos os
povos da Terra"

O Sol me acordou dançando no meu rosto. Pela manhã,
atravessou a palha da oca e brincou com meus olhos sonolentos. O irmão
Vento, mensageiro do Grande Espírito, soprou meu nome, fazendo tremer
as folhas das plantas lá fora. Eu sou Mutua, cacique da aldeia dos
Xavantes. Na nossa língua, Xingu quer dizer água boa, água limpa. É o
nome do nosso rio sagrado. Como guiso da serpente, o Vento anunciou
perigo. Meu coração pesou como jaca madura, a garganta pediu saliva.
Eu ouvi. O Grande Espírito da floresta estava bravo. Xingu banha toda
a floresta com a água da vida. Ele traz alegria e sorriso no rosto dos
curumins da aldeia. Xingu traz alimento para nossa tribo.

Mas hoje nosso povo está triste. Xingu recebeu sentença
de morte. Os caciques dos homens brancos vão matar nosso rio. O
lamento do Vento diz que logo vem uma tal de usina para nossa terra. O
nome dela é Belo Monte. No vilarejo de Altamira, vão construir a
barragem. Vão tirar um monte de terra, mais do que fizeram lá longe,
no canal do Panamá.
Enquanto inundam a floresta de um lado, prendem a água de
outro. Xingu vai correr mais devagar. A floresta vai secar em volta.
Os animais vão morrer. Vai diminuir a desova dos peixes. E se sobrar
vida, ficará triste como o índio.

Como uma grande serpente prateada, Xingu desliza pelo
Pará e Mato Grosso, refrescando toda a floresta. Xingu vai longe
desembocar no Rio Amazonas e alimentar outros povos distantes. Se o
rio morre, a gente também morre, os animais, a floresta, a roça, o
peixe tudo morre. Aprendi isso com meu pai, o grande cacique Aritana,
que me ensinou como fincar o peixe na água, usando a flecha, para
servir nosso alimento.

Se Xingu morre, o curumim do futuro dormirá para sempre
no passado, levando o canto da sabedoria do nosso povo para o fundo
das águas de sangue. Pela manhã, o Vento me levou para a floresta. O
Espírito do Vento é apressado, tem de correr mundo, soprar o saber da
alma da Natureza nos ouvidos dos outros pajés. Mas o homem branco está
surdo e há muito tempo não ouve mais o Vento.

Eu falei com a Floresta, com o Vento, com o Céu e com o
Xingu. Entendo a língua da arara, da onça, do macaco, do tamanduá, da
anta e do tatu. O Sol, a Lua e a Terra são sagrados para nós. Quando
um índio nasce, ele se torna parte da Mãe Natureza. Nossos
antepassados, muitos que partiram pela mão do homem branco, são
sagrados para o meu povo.

É verdade que, depois que homem branco chegou, o homem
vermelho nunca mais foi o mesmo. Ele trouxe o espírito da doença, a
gripe que matou nosso povo. E o espírito da ganância que roubou nossas
árvores e matou nossos bichos. No passado, já fomos milhões. Hoje,
somos somente cinco mil índios à beira do Xingu, não sei por quanto
tempo.
Na roça, ainda conseguimos plantar a mandioca, que é
nosso principal alimento, junto com o peixe. Com ela, a gente faz o
beiju. Conta a história que Mandioca nasceu do corpo branco de uma
linda indiazinha, enterrada numa oca, por causa das lágrimas de
saudades dos seus pais caídas na terra que a guardava.

O Sol me acordou dançando no meu rosto. E o Vento trouxe
o clamor do rio que está bravo. Sou corajoso guerreiro, não temo nada.
Caminharei sobre jacarés, enfrentarei o abraço de morte
da jiboia e as garras terríveis da suçuarana. Por cima de todas as
coisas pularei, se quiserem me segurar. Os espíritos têm sentimentos e
não gostam de muito esperar.

Eu aprendi desde pequeno a falar com o Grande Espírito da
floresta. Foi num dia de chuva, quando corria sozinho dentro da mata,
e senti cócegas nos pés quando pisei as sementes de castanha do chão.
O meu arco e flecha seguiam a caça, enquanto eu mesmo era caçado pelas
sombras dos seres mágicos da floresta. O espírito do Gavião Real agora
aparece rodopiando com suas grandes asas no céu. Com um grito agudo
perguntou: Quem foi o primeiro a ferir o corpo de Xingu? Meu coração
apertado como a polpa do pequi não tem coragem de dizer que foi o
representante do reino dos homens. O espírito do Gavião Real diz que
se a artéria do Xingu for rompida por causa da barragem, a ira do rio
se espalhará por toda a terra como sangue e seu cheiro será o da morte.

O Sol me acordou brincando no meu rosto. O dia se abriu e
me perguntou da vida do rio. Se matarem o Xingu, todos veremos o
alimento virar areia.

A ave de cabeça majestosa me atraiu para a reunião dos
espíritos sagrados na floresta. Pisando as folhas velhas do chão com
cuidado, pois a terra está grávida, segui a trilha do rio Xingu.
Lembrei que, antes, a gente ia para a cidade e no caminho eu só via
árvores.
Agora, o madeireiro e o fazendeiro espremeram o índio
perto do rio com o cultivo de pastos para boi e plantações mergulhadas
no veneno. A terra está estragada. Depois de matar a nossa floresta,
nossos animais, sujar nossos rios e derrubar nossas árvores, querem
matar Xingu.

O Sol me acordou brincando no meu rosto. E no caminho do
rio passei pela Grande Árvore e uma seiva vermelha deslizava pelo seu
nódulo. Quem arrancou a pele da nossa mãe? gemeu a velha senhora num
sentimento profundo de dor. As palavras faltaram na minha boca. Não
tinha como explicar o mal que trarão à terra. Leve a nossa voz para os
quatro cantos do mundo clamou O Vento ligeiro soprará até as conchas
dos ouvidos amigos ventilou por último, usando a língua antiga,
enquanto as folhas no alto se debatiam.

Nosso povo tentou gritar contra os negócios dos homens.
Levamos nossa gente para falar com cacique dos brancos. Nossos
caciques do Xingu viajaram preocupados e revoltados para Brasília. Eu
estava lá, e vi tudo acontecer.

Os caciques caraíbas se escondem. Não querem olhar direto
nos nossos olhos. Eles dizem que nos consultaram, mas ninguém foi
ouvido.

O homem branco devia saber que nada cresce se não prestar
reverência à vida e à natureza. Tudo que acontecer aqui vai voar com o
Vento que não tem fronteiras. Recairá um dia em calor e sofrimento
para outros povos distantes do mundo.

O tempo da verdade chegou e existe missão em cada estrela
que brilha nas ondas do Rio Xingu. Pronta para desvendar seus
mistérios, tanto no mundo dos homens como na natureza.

Eu sou o cacique Mutua e esta é minha palavra! Esta é
minha dança! E este é o meu canto!

Porta-voz da nossa tradição, vamos nos fortalecer. Casa
de Rezas, vamos nos fortalecer. Bicho-Espírito, vamos nos fortalecer.
Maracá, vamos nos fortalecer. Vento, vamos nos fortalecer. Terra,
vamos nos fortalecer. Rio Xingu! Vamos nos fortalecer!

Leve minha mensagem nas suas ondas para todo o mundo: a
terra é fonte de toda vida, mas precisa de todos nós para dar vida e
fazer tudo crescer. Quando você avistar um reflexo mais brilhante nas
águas de um rio, lago ou mar, é a mensagem de lamento do Xingu
clamando por viver.

Cacique Mutua",
Xingu, Pará, Brasil, 08 de junho de 2011

Que os bons de coração se inspirem! Na autênticidade e na
verdade de um nobre morador das terras do Xingú! ?Carta do Cacique
Mutua a todos os povos da Terra"

Mãe Terra nossa Natureza

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