Por Aziz Nacib Ab’Saber*
O chamado Código Florestal deve ser ampliado para tornar-se um Código de Biodiversidades
O debate está lançado. Precisamos avançar no sentido de construir uma proposta que leve em consideração as discussões existentes no meio acadêmico e nas diversas entidades que representam os anseios mais avançados dos diversos segmentos sociais e, sobretudo do país. Assim, na busca da prosperidade social, caminharemos no sentido de estabelecer uma forma mais racional e menos agressiva de relacionamento com o meio ambiente, voltados para as gerações futuras e para um Brasil de todos os brasileiros.
EXISTEM códigos que possuem uma relevância total em relação ao futuro do país. Não se trata, porém, de um futuro aleatório, pensado apenas em função de viventes atuais, interessados em transformar todos os espaços em "mercadorias" para favorecer alguns em detrimento de todas as atuais e futuras gerações. Determinados códigos, em suas posturas, têm responsabilidades com o futuro, a diferentes profundidades de tempo. É esse exatamente o caso do Código Florestal. Um documento legal, elaborado para induzir a um melhor equilíbrio na organização dos espaços herdados da natureza, e sujeito às mais esdrúxulas formas de utilização, por ações antrópicas, historicamente cumulativas.
É fora de dúvida que muitos códigos, de tempos em tempos - não muito curtos - possam sofrer revisões para aperfeiçoamentos, adequação à inteligência; respeitando a evolução dos conhecimentos sobre determinados setores ... Tais como a saúde pública, sistema educacional, saneamento básico, proteção de biodiversidades; conciliação entre desenvolvimento e proteção ambiental e ecologia; estratégias corretas para a inserção dos excluídos; exigências para avaliações periódicas sobre o metabolismo urbano de grandes aglomerações do mundo urbano-industrial
E, sobretudo, leis obrigatórias, democráticas e funcionantes para a previsão dos impactos em projetos que interfiram no ambiente físico, social e ecológico. Posturas que nos são cobradas por todos os grupos esclarecidos do mundo. E que, por outro lado, pela sua inexistência e incorreção, nos são as sacadas por inimigos potenciais de nossa soberania.
O Código Florestal brasileiro - elaborado há quase meio século - funcionou como documento legal endereçado ao gerenciamento da organização imposta pelos homens sobre os espaços naturais, herdados de um longo processo geológico, fito geográfico e biológico. Pela evolução dos conhecimentos científicos, no contexto do fim do século e do milênio, o clássico documento elaborado pelas elites culturais do passado carece de adaptações a novas circunstâncias. E, sobretudo, ampliações que o estendam para a proteção ou manejo de todas as áreas de biodiversidades regionais do país:
Amazônia, Caatinga, Brasil Tropical Atlântico, Cerrados, Planalto das Araucárias e Pradarias Mistas do Rio Grande do Sul. Sem esquecer, evidentemente, a fachada atlântica inter e subtropical brasileira. Para interferir no Código que possuía aparentemente um endereço para florestas, há de se exigir a presença e as opiniões técnicas e científicas de personalidades ilibadas, conhecedoras do país em seu todo. Técnicos e cientistas conhecem as sutilezas e vocações de todas as regiões naturais e tipos de espaços geográficos e econômicos. Evidentemente que - para elaborar um novo Código Florestal - não basta apenas o conhecimento da organização natural dos espaços (domínios morfoclimáticos e fitogeográficos) ; mas torna-seimprescindí vel conhecer em profundidade a realidade dos cenários e defeitos da organização (ou desorganização) criados pelos homens e pela natureza sobre as velhas heranças da natureza.
Convém lembrar que os três códigos, transformados em leis, endereçados à proteção dos recursos naturais, foram editados entre 1965 e 1967: Código Florestal (15/9/1965); Código de Caça (03/1/1967); e Código de Pesca (2712/1967). A estes, foram acrescentadas anotações remissivas da Divisão de Proteção de Re-cursos Naturais (DPRN), de 05/01/ 1985. E, além disso, uma portaria mais abrangente, editada em 24/05/ 1985, seguida de uma Resolução do Conselho Nacional do Meio-Ambiente (CONAMA), de 18/09/1985, da qual constam definições fisiográficas e fito geográficas esclarecedoras, e detalhadas posturas para a proteção de Reservas Ecológicas. A tarefa de revisar o Código Florestal vigente até o ano 2000, é extremamente delicada e responsável. Para reestruturá-lo com inteligência e racionalidade, é necessário, em primeiro lugar, dominar o conhecimento de todas as assembléias regionais de ecossistemas, assim como todas as faixas de transição e contato existente entre elas (ecótonos), além de todos os "enclaves" eventuais de vegetação ocorrentes nas áreas de nossos domínios fitogeográficos ("ilhas" de matas no domínio das caatingas; cerrados na Amazônia e no entremeio das matas atlânticas; araucárias nos altos campos da Bocaina e Campos de JordãolMonte Verde; riüni-redutos de cactáceas no litoral fluminense, nas coxilhas da Campanha Gaúcha e setores rochosos de serranias do Brasil Tropical Atlântico). Entre outras anomalias para as quais somente a "Teoria dos Refúgios" foi capaz de oferecer explicações.
Entretanto, seria ilusório reconhecer o mapa da vegetação primária, esquecendo o cenário real de uso ou degradação dos espaços ecológicos tal como se apresentam ao final do século XX, no território brasileiro. Daí porque é absolutamente imprescindível um bom conhecimento do quadro regional vigente de agro-ecossistemas e ecossistemas urbanos dispostos em rede no "espaço total" de áreas ou sub-áreas do território.
A proteção ecológica e ambiental das terras baixas florestadas da Amazônia Brasileira é, certamente, a mais complexa e responsável. Ditar normas para incentivar desenvolvimen-
tos sub-regionais cruzados com o máximo de florestas-em- pé (vale dizer biodiversidade primária total, é tarefa quase impossível. Indicações genéricas de que é necessário preservar no mínimo 50% das florestas em cada propriedade - sejam elas pequenas, médias, grandes ou muito grandes - é um convite irreparável para engendrar o caos no cenário previsível para a Amazônia do século XXI. Em relação a propriedades de 100.000 a 2 milhões de hectares no interior das imensidões amazônicas, é necessário restringir ao mínimo possível a abertura de clareiras para agropecuária ou manejos de exceção. E, quando essas enormes glebas fundiárias forem parceladas para venda em lotes de 50 a 100 hectares, devem responder legal e contratualmente pelo gerenciamento das mesmas para evitar a desfiguração ecológica e o caos total no uso dos espaços outrora florestados. Restrições específicas devem ser inseridas no código em reelaboração para evitar a desperenização das cabeceiras de igarapés em projetos de rodovias interfluviais, de comprovada interferência negativa para os setores de origem da hidrografia.
No domínio das pradarias mistas, outrora interpenetradas por florestas galerias e ecos sistemas típicos de planícies aluviais, existem considerações especiais baseadas no mosaico de ecossistemas das coxilhas, e no estado de predação da cobertura das planícies de inundação. O fato de a rizicultura gaúcha ter se estendido pela maior parte das largas planícies
Revisar o Código Florestal vigente até o ano 2000 é tarefa extremamente delicada
e banhados regionais, acarretou uma pronunciada devastação da antiga cobertura vegetal de tais compartimentos do território gaúcho. Razão pela qual deve ser rigorosamente proibida a remoção de florestas beiradeiras de sangas, remanescentes em qualquer setor da Campanha Gaúcha.
A forte erodibilidade dos solos arenosos das coxilhas esculpidas em arenitos Botucatu, na Campanha de Sudoeste obriga a posturas que induzam a uma ocupação agrária dotada de menor agressi vidade (erosividade) . Aliás, trate-se do Nordeste semi-árido ou das pradarias úmidas do Rio Grande, o reconhecimento de solos frágeis e erodíveis, sujeitos a erosividades arrasadoras por processos inadequados de manejo, os mesmos devem ser motivo para estratégias indutoras, em qualquer código de vegetação destinado a substituir o velho e aplicável Código Florestal que honrou a geração técnico-cientí fica responsável por sua elaboração.
As indicações para o Planalto das Araucárias obedecem ligeiramente à somatória das posturas sugeridas para os domínios tropicais do País. Com a diferença fundamental, centrada no fato de que em menos de 60 anos as atividades madeireiras e a fantástica expansão da agricultura comercial mecanizada, redundaram na eliminação quase total dos antigos bosques subtropicais e suas araucárias emergentes. O modelo de silvicutura adotado para os solos menos férteis, no segundo e terceiro planaltos do Paraná e de Santa Catarina, deve pressupor mosaicos de plantações em que se entremeiam atividades agrárias permitidas: plantio direto, pastagens restritas para gado estabulado ou atividades horti-granjeiras de garantida comercialização. Fica estabelecido que, ao fim do período de aluguel de espaços para o desenvolvimento de plantações homogêneas comerciais, as empresas que utilizaram a gleba para a produção de espécies homogêneas terão de devolvê-Ias com a extensiva liberação de raízes e tôcos, em um processo ético de devolução de solos reutilizáveis.
Devem ser listados subsídios especiais, viáveis, para a implantação das técnicas de cultivo direto em áreas de solos reconhecidamente inférteis e problemáticos. Para evitar degradações cumulativas e irreparáveis, deve-se proibir o uso agrícola de escarpas e vertentes de relevo com declividade superior a 20 ou 30%.
No que concerne ao domínio dos chapadões centrais, recobertos por cerrados extensivos e dotados de espaçadas drenagens perenes, o rol de posturas específicas vinculam-se à proteção das estreitas florestas galerias biodiversas e às limitações de uso de agrotóxicos desnecessários e encarecedores da produção agrária (custo Brasil). É indispensável ainda uma proteção rígida das florestas orográficas biodiversas, existentes em escarpas de cuestas ou nas serranias fronteiriças. A liberação de espaços dos cerrados para fins de agricultura comercial mecanizada, deve pressupor limites percentuais e modelos não agressivos à biodiversidade in situo E, uma proteção especial, obrigatória, para as cabeceiras em dales (anfiteatros rasos de cabeceiras de florestas galerias) circundadas por veredas.
As posturas genéricas devem especificar, em algum momento, as limitações de uso de adubos químicos ou eventuais agrotóxicos nas bacias ou sub-bacias de rios que vão ter ao pantanal matogrossense. Sendo que a depressão pantaneira - ela própria - deve receber um tratamento específico e rígido de proteção ambiental induzida.
A inovação introduzi da pela técnica do pivô, por meio de canhões d'água, obriga a uma nova proposta de gerenciamento dos setores em que vem se multiplicando o aludido processo de irrigação. Procurando favorecer os produtores rurais, deve ser explicitado que, entre os grandes círculos de irrigação, as interseções dos espaços em atividade restam em poisio, visando proteger parte da biodiversidade natural.
No conjunto dos espaços do domínio das caatingas, é aconselhável a defesa radical dos leitos secos dos rios e ribeiras para proteção da qua-lidade da água represada abaixo das areias, por entre soleiras de rochas duras. Para tanto, deve se proibir totalmente o uso de agrotóxicos e adubos químicos nas culturas de vazantes. Urge, ainda, gerenciar os diferentes espaços sertanejos em relação ao manejo agrícola baseado em produtos químicos para evitar o envenenamento das águas remanescentes nos leitos dos rios intermitentes sazonários. Deve ficar bem definido que, em qualquer projeto de transposição de águas que implique na eliminação dos espaços tradicionais das vazantes de leito de rios, seja internalizada a exigência de reformas agrárias para compensar os tradicionais agricultores das vazantes. Há de (re)educar a população ribei-rinha de rios e açudes que secam, assim como as autoridades municipais, a fim de que não sejam construídos decks para sanitários nas margens de rios que "cortam", mesmo porque a defesa quanto a resíduos fecais é o complemento da defesa da poluição por agentes químicos. É um fato básico a ser considerado na infra-estrutura sanitária dos núcleos urbanos sertanejos.
Passando das posturas de defesa da sanidade das águas de rios e açudes para o manejo dos espaços agrários sertanejos, há de reunir diferentes conhecimentos sobre o manejo agrícola ou agro-pastoril dos sertões, a fim de elaborar posturas adequadas para produzir sem predar ou degradar. Encontrar e elaborar tais posturas para atender as peculiaridades mais notórias de uso tradicional dos espaços regionais, sob o contexto de uma rígida estrutura agrária, não é uma tarefa para observadores
distantes e despreparados.
No que diz respeito às antigas "ilhas" de matas tropicais inseridas em setores locais do domínio sertanejo, é indicada a postura de limitação ou diversificação de culturas extensivas, evitando-se a expansão desmesurada de mono culturas que possam eliminar extensivamente as velhas matas biodiversas dos "brejos" nordestinos.
Na área dos "agrestes", totalmente ocupadas por pequenas propriedades, há de exigir duas obrigações: proteção da estreita faixa da chamada mata da ribeira, localizada nos diques marginais de córregos e pequenos rios; e ampliação das cercas vivas das quadras que alternam setores de pecuária e terrenos agrícolas, constituindo- se na mais importante paisagem agrária popular do País.
As mudas de árvores de caatingas arbóreas ou de matas secas, destinadas a triplicar as numerosas cercas vivas, deverão ser forneci das por hortos municipais a ser instalados nos próximos 10 anos (2000-2010).
Se é que nas terras do semi-árido brasileiro, as posturas de um código de proteção à natureza tenham a obrigatoriedade de cuidar da proteção das biodiversidades regionais, incluindo um tratamento inteligente sobre os recursos hídricos e o endereço social dos espaços de vazantes, no Brasil Atlântico multiplicam- se as posturas e exigências legais ... Nas áreas de "mares de morros", depenados de suas florestas primárias por manejos inadequados e inconseqüentes, há de induzir (re)vitalizações dos espaços agrários à custa de estratégias dinamizadoras, internalizadas nas próprias posturas e exigências legais. Para tanto, já existem estudos básicos e propostas consensuais incluídas no Projeto FLORAM, elaborado no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP).
No que tange às notáveis escarpas tropicais da Serra do Mar, Serra da Mantiqueira e bordos atlânticos do Planalto Sul-baiano e Borborema Oriental, deve ser indicado um estatuto de proteção integrada e permanente, nos moldes do estatuto do tombamento - já aplicados nos esta-dos de São Paulo e Paraná. Ressalvadas, é claro, umas poucas ligações entre Litoral e Planalto, dirigidas para finalidades econômicas e sociais indispensáveis e atividades culturais e de lazer de reconhecida validade. Nunca, certamente, para atender os apetites daqueles que se acostumaram a grandes expectativas de lucros com a mercadoria "terra". Ou por construtivismos tão lucrativos quanto inconseqüentes.
Em muitos casos, as paisagens de exceção ocorrentes no território brasileiro possuem sutis variáveis ecossistemas a serem considerados num Código de Biodiversidades. Nesse sentido, enquadram-se os casos dos "pães de açúcar", inselbergs, mini-refúgios de cactáceas estabelecidas em lajedos e mares de pedras, campos ou vertentes íngremes de chapadas e escarpas rochosas. Na grande maioria de tais feições geomorfológicas ocorrem coberturas vegetais de gramíneas ou agrupamentos de cactáceas e bromélias. Portanto, além da predominância de fatos geológicos superficiais, existem rupestresbiomas, ou sejam, ecos sistemas especiais e localizados, nos quais se inserem fatos bióticos, incluindo-se refúgios faunísticos locais.
Um verdadeiro Código de Biodiversidades deve cuidar de tais ambientes ecológicos, protegendo complementarmente paisagens de exceção, evitando agressões pelo estabelecimento de pedreiras ou por tinturas ou letreiros propagandísticos. Evidentemente, deve se dar o máximo de atenção ao Pão de Açúcar (RJ), ao Penedo (ES), extensivos aos pontões rochosos, "dedo de Deus", pedras tortas, ocorrentes desde Pancas (ES) à Serra do Mar paranaense. Lajedos de cimeira de serras, como é o caso da Serra do Jardim, com suas cactáceas, bromélias e mini-fauna de lagartos, devem ser simplesmente tombados (Valinhos - Vinhedo - SP).
Com base nesses comentários prévios, que envolvem considerações sobre as peculiaridades e exigências da maior parte dos domínios naturais do Brasil (à exceção da zona costeira, que merece um código especial de gerenciamento e posturas diferenciais de utilizações), sugere-se que o chamado Código Florestal seja ampliado para a condição de um Código de Biodiversidades Regionais e Recursos Hídricos, a ser elaborado por personalidades dignas e competentes, entre as que compõem a consciência técnica, científica, social, ética e jurídica de um Brasil inteligente e democrático. De uma sociedade que exija que se ouça as aspirações e expectativas de todos os segmentos de sua pirâmide social. Visando atender tudo aquilo que for razoável e factível, aperfeiçoando os estatutos e posturas que se dirigem para um tempo infinito, relacionado à proteção da vida no planeta Terra.
(*) Aziz Nacib Ab’Saber é geógrafo, professor emérito da USP e presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
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